A(s) filha(s) perdida(s)
- Mônica Cyríaco
- 26 de jan. de 2022
- 9 min de leitura
Atualizado: 22 de dez. de 2022
As coisas mais difíceis de falar são as que nós mesmos não conseguimos entender (A filha perdida)
e nem ao menos quero que me seja explicado aquilo que para ser explicado teria que sair de si mesmo. Não quero que me seja explicado o que de novo precisaria da validação humana para ser interpretado. (A paixão, segundo GH)
Devo confessar que sou muito fã de Elena Ferrante, a misteriosa escritora italiana que é best-seller no mundo. Desde que li a quadrilogia da Amiga Genial, passei a segui-la atenta e minha admiração aumentou quando soube que Ferrante leu Clarice Lispector e a incluiu na lista de escritores que influenciaram sua escrita. É interessante porque, antes mesmo de saber dessa lista, eu já havia intuitivamente estabelecido essa relação entre as duas escritoras, a história de Lila, personagem da Amiga Genial e sua desmarginação me recordava demais de GH e sua tentativa de despersonalização.
Agora estamos diante do sucesso da adaptação do livro A filha perdida, na Netflix, o que levou muitos espectadores a buscar o livro, publicado pela primeira vez em 2006 e, no Brasil, dez anos depois. Esse livro foi escrito antes da da Amiga Genial e traz muitos temas que serão desenvolvidos profundamente nos 4 livros da escritora que viraram febre mundial, conhecida como Ferrante Fever. E que temas são esses?
O núcleo napolitano
Elena Ferrante escreve a partir de seu universo pessoal e recria precisamente uma Nápoles pós-guerra, com suas idiossincrasias, suas peculiaridades, suas diferenças socioeconômicas e culturais em relação ao Norte da Itália e essa geografia napolitana condiciona a trama em que suas personagens se veem envolvidas. São personagens que vivem num meio hostil, violento, dominado pela máfia, com baixo acesso à educação de qualidade e pouca oportunidade de ascensão social. Há gente pobre, pequenos comerciantes e artesãos, trabalhadores explorados ao lado de ricos mafiosos que vivem na opulência, mas que são o único exemplo do que se costuma chamar de vencer na vida. Poucos escapam daquela sina, a não ser pela emigração ou pelo estudo. Nessa sociedade patriarcal, as mulheres aparecem presas à esfera doméstica, determinadas pelo casamento e pela maternidade. Sair desse ciclo exige esforço hercúleo e poucas conseguem. Esse é o cenário em que as tramas de seus livros se desenvolvem.
É também esse cenário solar que aparece no início do livro A filha perdida. Ele é o pano de fundo das memórias de Leda, que vai passar férias na costa de Nápoles, lá na pontinha da bota, na Costa Jônica. Vamos observando que a luz da praia se opõe ao que será narrado, ao mesmo tempo que vai jogando luz em cantos obscuros da mente da narradora.
A inadequação
Leda vai dirigindo seu carro, sente-se condutora de seu destino? Durante a viagem desde Florença, onde vive há anos, sabemos que Leda é professora, que suas duas filhas estão morando com o pai no Canadá e que ela experimenta a liberdade depois de conviver e criar as filhas por 25 anos. Retoma, então, sua liberdade, a partir de situações cotidianas, como corrigir provas ouvindo música, dormir à tarde, comer fora, essas pequenas alegrias da vida adulta.
" senti-me milagrosamente desvinculada, como se um trabalho difícil, enfim concluído, não fosse mais um peso sobre meus ombros"
Isso a fez sentir-se rejuvenescida e animada a fazer uma viagem para a praia, durante suas férias. Escolhe justamente a costa napolitana, lugar onde passou parte de sua infância e juventude. Enquanto caminha em direção ao mar, retorna à infância e à difícil relação com sua mãe.
Adoro o cheiro de resina: quando criança, passei verões em praias ainda não totalmente devoradas pelo cimento da Camorra, que começavam quando terminava o pinheiral, Aquele era o cheiro de férias, de brincadeiras infantis de verão. Cada estalo ou ruído surdo de pinha seca e a cor escura dos pinhões me lembravam a boca da minha mãe, que ria enquanto esmagava as cascas, extraía os frutos amarelinhos e os dava para minhas irmãs, que os pediam ruidosamente, e para mim, que os esperava calada. Ou então os comia ela mesma, sujando os lábios de pó escuro e dizendo, para me ensinar a ser menos tímida: para você, nada, você é pior do que uma pinha verde.
O mito do amor materno
Após o terceiro ou quarto dia de praia, repara no grupo barulhento de napolitanos, que imediatamente a levam de volta ao passado e então percebemos um novo desconforto de Leda: a família napolitana de que fizera parte. Ao descrever o grupo utiliza expressões como homem de expressão cruel, meninos que se enfrentavam ferozmente, mulher grande com pernas curtas e seios enormes, e atitudes como riam com gargalhadas ruidosas, chamavam-se com gritos arrastados e frases exclamativas ou conspiratórias, às vezes brigavam.
No meio desse turbilhão barulhento , surge a figura da jovem Nina, sempre acompanhada sua filha, Elena e a boneca Nani ( observe que o nome da boneca é uma inversão do nome da jovem mãe). Nina não parece pertencer àquele grupo caótico, pelo contrário, está sempre alheada deles em companhia da filha.
De início, ao observar Nina e Elena brincando de boneca, imediatamente e por oposição, relembra de sua mãe, das suas ameaças de sumir um dia, da raiva expressa pelo dialeto napolitano. Nina parecia tão serena que Leda chega a sentir inveja. Esse sentimento vai acompanhar o olhar de Leda pelos próximos dias de praia.
Com o passar dos dias, o que era admiração começa a transformar-se em mal-estar. Ao observar a brincadeira da menina com a mãe e a boneca, começa a considerar a menina extremamente exigente das atenções da mãe e "obtusamente metódica", repetindo a brincadeira à exaustão. Nina pareceu-lhe afetada, falsa, como se estivesse encenando o papel de mãe jovem e bela para a multidão da praia. E as duas atribuíam à boneca a voz ora da mãe , ora da filha, o que causa grande incômodo em Leda:
Mas era evidente que eu não conseguia entrar na ilusão delas, sentia por aquela voz dupla uma repulsa cada vez maior/.../ me sentia desconfortável como se estivesse diante de algo malfeito, como se parte de mim exigisse intensamente que elas se decidissem e dessem à boneca uma voz estável , constante, a da mãe ou a da filha, chega de fingir que eram a mesma coisa/.../ tive vontade de me levantar e dizer chega, vocês não sabem brincar, acabem com isso.
Estamos no cerne do conflito criado na narrativa: a maternidade conflituosa vivida pela protagonista se espelha na relação da jovem mãe e sua filha. A boneca reproduz a projeção simbólica da relação de Leda com sua mãe/filhas e será esse o motivo que leva a narradora a pegar a boneca e não devolvê-la.
É interessante notar que a menina trata a boneca também como projeção do que vive. Brinca de beijá-la, de contar-lhe segredos, de torná-la grávida como a tia.
A boneca atualiza o tempo perdido da infância, é o retorno de uma filha, ela mesma, com quem há muito havia perdido o laço. É que Leda, agora dispensada de ser mãe, poderia retomar aquele momento da vida em que era apenas ela mesma, uma menina vivendo sua infância. No entanto, essa infância retorna e com ela os medos, as inseguranças, os fantasmas escondidos no inconsciente, à margem do tempo . O maior fantasma é sua mãe, não nomeada no romance, aquela que afirma o tempo todo que deseja sumi
Eu a observava, surpresa e decepcionada, e planejava não ser como ela, tornar-me realmente diferente e demonstrar-lhe , desse modo, que era inútil e ruim que ela nos assustasse com seus " vocês nunca mais vão me ver". Era preciso que ela mudasse mesmo, ou que realmente fosse embora de casa, que nos abandonasse, que desaparecesse/.../ como eu me envergonhava de ter saído da barriga de alguém tão infeliz.
E não é justamente o que Leda faz, mais tarde, ao sumir por três anos da vida de suas filhas? Mas essa constatação de que não queria ser como a mãe aparece no romance de modo inconsciente, parece que quanto mais Leda nega a mãe, mais vai se tornando parecida com ela. A figura da boneca reaparece aqui, de um modo um pouco invertido, onde a mãe vira a boneca das filhas
Brincar de ser a mamãezinha de uma boneca. Minha mãe nunca esteve disposta às brincadeiras que eu tentava fazer com ela. Logo ficava nervosa, não gostava de bancar a boneca. Já eu, não. Como adulta sempre tentei me lembrar do sofrimento de não poder mexer nos cabelos, no rosto, no corpo de minha mãe, por isso fui pacientemente a boneca de Bianca nos seus primeiros anos de vida./.../ Eu estava esgotada, me lembro: Marta não pregava os olhos de noite, dormia pouco de dia , e Bianca estava sempre à minha volta, cheia de vontades; não queria ir à creche e, quando eu conseguia deixá-la lá, adoecia complicando ainda mais minha vida./.../No entanto eu tentava manter a calma, queria ser uma boa mãe. Deitava no chão, deixava que ela cuidasse de mim como se eu estivesse doente. Bianca me dava remédios, escovava meus dentes, me penteava./.../ Fui muito infeliz naqueles anos. Não conseguia mais estudar, brincava sem alegria, sentia meu corpo inanimado, sem desejos. Quando Marta começava a gritar no outro cômodo, era quase uma libertação para mim. Levantava-me interrompendo bruscamente as brincadeiras de Bianca.
Leda percebe, nesses dias de férias, que tem pouca intimidade com suas meninas, Bianca, a mais velha e Marta, a mais nova. As filhas travam entre si uma competição fraterna carregada de ciúmes e cobranças. No passado, envolvida intensamente na criação das filhas, sem possibilidade de levar seus projetos adiante, sem uma rede de apoio para dividir as tarefas domésticas, viu-se frustrada, emparedada, castrada e muito infeliz.
Todas as esperanças da juventude já me pareciam destruídas, era como se eu estivesse caindo pra trás na direção da minha mãe, da minha avó, da cadeia de mulheres mudas ou zangadas da qual eu derivava.
Estamos diante dos motivos que levaram a protagonista a ir embora de casa por três anos :o conflito gerado pela maternidade e tudo o que ela traz de mudanças na vida de uma mulher. E esse abandono não vem sem culpas, tanto é que Leda escreve cartas às filhas, quando estas decidem ir viver com o pai, tentando falar no assunto, apresentar seus motivos, no entanto, as cartas não são respondidas, a filha mais velha recusa-se a tocar no assunto, deixando a mãe sem respostas.
Que bobagem pensar que é possível falar de si aos filhos antes que eles tenham pelo menos cinquenta anos. Querer ser vista por eles como uma pessoa e não como uma função. Dizer: sou sua história, vocês começam comigo, escutem, pode ser útil.
A boneca
Após apropriar-se da boneca perdida na praia, Leda passa a brincar com ela, troca sua roupinha, dá-lhe banho, coloca-a na cama, retoma momentaneamente o prazer infantil perdido. Seria por isso o retorno à praia com cheiro de pinhas verdes? a praia da infância longínqua? No entanto, esse prazer não é mais o prazer original, já que ela agora é uma mulher adulta. Esse prazer vem sempre acompanhado de um líquido viscoso e marrom saído de dentro da boneca. O que poderia representar esse líquido?
Sabemos que a menina, ao brincar com a boneca fingindo que esta estaria grávida, insere uma minhoca de praia em seu interior, é o que faz com que o líquido marrom escape pela boca da boneca todas as vezes que Leda a pega no colo. Sabe que precisa se separar do brinquedo, devolvê-lo à dona, mas sente dor de perdê-lo. Resolve lavar a boneca por dentro, é quando vê a minhoca e a retira delicadamente com uma pinça. Essa situação a leva para a época de sua segunda gravidez, retoma a sensação que teve ao se ver grávida novamente e usa quase a mesma imagem relacionada a esse estranho líquido:
Parecia que meu marido , ocupado demais com a sua fúria de progredir , sequer percebia que sua filha , depois de nascer, havia se tornado voraz, exigente, desagradável, como nunca me parecera dentro da barriga/.../ Minha cabeça afundou para dentro do corpo, parecia que não havia prosa, verso, figura de linguagem, frase musical, sequência de filme ou cor capaz de domesticar a fera sombria que eu carregava no ventre. Aquela foi a verdadeira derrocada para mim: a renúncia a qualquer sublimação da minha gravidez, a desconstrução da mesma lembrança feliz da primeira gestação, do primeiro parto. Nani, Nani. A boneca, impassível continuava a vomitar. Você jogou na pia todo o seu limo, muito bem/.../ Deixei a água correr dentro dela e depois a sacudi forte para lavar bem a cavidade turva do tronco, do ventre e , enfim, retirar a criança que Elena havia posto dentro dela.
Esse momento da brincadeira é extremamente sério e não poderia ser mais perturbador! É aquele momento que nos tira do lugar, nos causa incômodo e provoca a reflexão se existe mesmo o tal amor materno instintivo e preexistente.
A boneca também voltará a aparecer na narrativa de A amiga genial e será o elo que unirá as duas protagonistas do romance até o fim de suas vidas.
Brincadeiras. Dizer às meninas tudo, desde a infância: mais tarde elas é que vão pensar em inventar para si um mundo aceitável. Essa é a solução , brincar de verdades.
Uma mãe não é nada além de uma filha que brinca.
Perguntas que poderíamos fazer em relação à educação de nossas meninas é quando separá-las das bonecas? que outras brincadeiras poderiam ser brincadas pelas meninas para que tenham um mundo mais aceitável?
O título do livro em Português não é A boneca perdida, mas A FILHA perdida. E há muitas filhas perdidas, vejamos: Elena, a criança, perde sua boneca/filha, Leda, no passado, perde a filha mais nova na praia, Nina perde Elena , também na praia, ela mesma, Leda, é uma filha que se perdeu da mãe e que "perdeu" suas filhas para o pai.
Já no original em italiano, o título é La Fliglia Oscura. Oscuro( adj.) , obscuro, ininteligível, anônimo, escondido. Perdida ou escondida, Leda, que inicia a narrativa conduzindo seu próprio carro e seu destino, termina a narrativa perdendo a direção na estrada de volta pra casa. Pouco antes de pegar a estrada pra Florença, ainda fechando suas malas, recebe um telefonema das meninas
_ Mamãe, o que você anda fazendo, não liga mais pra gente? Pode pelo menos nos dizer se está viva ou morta?
Murmurei, comovida
_ Estou morta, mas bem.
Sim, ficamos todas nós_ mães perfeitas, filhas exigentes e perdidas, mulheres escondidas_ um pouco mortas ao final da leitura. Mas, passamos bem.

Leiam Elena Ferrante!
Muito boa a análise, bastante elucidativa. Também adoro Elena Ferrante. Tenho todos os seus livros, e foi A Amiga Genial que me fez retornar ao hábito da leitura.
Excelente resenha, minha amiga. Vi o filme não me lembro quando e não sabia do livro. Ao ver o filme, tive uma sensação bastante angustiante. E talvez seja isso mesmo o que a narrativa queria provocar. Sua análise me ajudou a entender um pouco dessa angústia - ainda que eu nunca tenha tido a experiência da maternidade. Muito bom!