“Declaro la independencia de la imaginación y el derecho del hombre a su propia locura”. Salvador Dalí.
Era uma vez um artista que tinha tanto medo da morte, que decidiu ser imortal! Então resolveu construir um museu e nele colocou toda sua força criativa e depois pendurou seus sonhos nas paredes. E o museu é exatamente do jeito do artista: exibicionista _ é um museu-teatro, transbordante _ as criações estão nas paredes, tetos, telhados, no chão, nos jardins, excêntrico.
O Teatro Museu Dalí é um ótimo lugar pra vermos seus sonhos desenhados. E muito bem desenhados! O artista tem um domínio magistral do desenho, das cores e da perspectiva, que utiliza para criar a ilusão de realidade inconsciente, ou melhor, da surrealidade. Amante dos pintores clássicos , seu mestre maior era Velázquez, a quem dedica seu bigode e uma sala inteira no museu, com uma das pinturas de teto mais lindas que já vi! Observe no detalhe ampliado Dalí e Gala observando a cena.
O busto em bronze traz três figuras conectadas, formando o rosto do pintor admirado por Dalí. Sobre o busto dá pra ver um pedacinho da pintura do teto refletida no vidro que protege a escultura
Nesse espaço onírico daliniano é frequente percebermos o tema do duplo, do ambíguo, da duplicidade de signos misturados num mesmo objeto, que nutre sua busca da identidade. Outro tema frequente é o tormento do artista preso neuroticamente à angústia existencial de vida/morte, demonstrada nas imagens ligadas ao erotismo e à putrefação, às fantasias sexuais e à decomposição . Não por acaso as imagens ligadas à comida, armas, sexo, morte, sangue, insetos, relógio e fezes são recorrentes em suas obras.
O Surrealismo sou eu !
Criador do método paranoico-crítico, um método de associação e interpretação de imagens delirantes, que revelam ideias obsessivas originadas no inconsciente, Salvador Dalí foi muito influenciado por Freud e seu trabalho sobre a interpretação dos sonhos e também por Lacan, com quem teve oportunidade de aprofundar os conceitos de seu processo criativo. Segundo essa abordagem, o artista é aquele que sonha acordado, que revela , através de uma autoanálise, suas alucinações e fantasmas, medos e fantasias escondidos sob o mundo das aparências e que, ao encontrá-los, pode, então, canalizá-los à criatividade total. Essa canalização deve se dar sem nenhum controle racional.
O quadro abaixo, pintado em 1944 nos EUA chama-se Sonho provocado pelo voo de uma abelha ao redor de uma romã um segundo antes de despertar e traz praticamente todos os temas caros ao artista. Nele vemos Gala dormindo, absolutamente suspensa do tempo e do espaço, quase tudo flutua, até as rochas sobre o mar. A paisagem é marinha, lembra as paisagens de Cadaqués onde reina a calma. A mulher está nua e completamente indefesa. No entanto, os dois tigres que saltam do peixe que salta da romã, além da baioneta, dirigem-se para a mulher e sugerem violência. Se você ainda não viu a abelha, ela está voando em torno de uma outra romã, menor, no canto inferior direito da tela e cuja sombra converte-se em um coração, o que sugere erotismo, sensualidade. Gala sonha e seu sonho é provocado pelo zumbido dessa abelha e no próximo segundo despertará com o som produzido pela arma. Outra associação interessante é que romã em espanhol chama-se granada e é da granada maior que explodem os animais e a arma. As granadas tanto podem sugerir violência, quanto erotismo. É também um símbolo cristão de fertilidade e ressurreição.
Museu Thyssen Bornemisza, Madri
E essa recusa ao controle racional muitas vezes foi mal compreendida. Se qualquer assunto pode vir à tona na obra do artista, seria impossível cobrar coerência ao que foge à razão. E Dalí fez questão de fugir de qualquer comportamento coerente e sensato durante toda a sua vida. Definia-se como um louco paranoico.
Extremamente polêmico, muitas vezes me pego pensando se, estando vivo, seria candidato ao cancelamento nas redes sociais, já que durante toda a sua trajetória sempre esteve envolvido ( e fazia questão de estar) em polêmicas. Autodeclarado monarquista sendo um catalão, converteu-se ao catolicismo durante a ditadura franquista; místico, interessado em física quântica, DNA e 4ª dimensão, Salvador Dalí foi genial e controverso e só teve compromisso com a liberdade de seu universo onírico perturbador. O episódio da expulsão de Dalí do grupo dos surrealistas é bem ilustrativo dessa falta de respeito com qualquer coisa que não fosse com sua liberdade artística. Dalí fora apresentado ao grupo por Joan Miró . Ao conhecer o líder, André Breton, Dalí diz:
Imediatamente ele se apresentou a meus olhos como um novo pai. Pensava então que ele me proporcionaria um segundo nascimento. O grupo surrealista era para mim uma espécie de placenta que me nutria e acreditava no Surrealismo como nas tábuas da Lei.
Ao narrar esse encontro em suas memórias As confissões inconfessáveis de Salvador Dalí, o artista conta que o primeiro choque com o grupo aconteceu por causa do quadro Le jeu lugubre (1929)
Via-se ali um homem de costas cujas ceroulas filtravam excrementos perfeitamente moldados. Gala já havia me perguntado se eu era coprófago, traduzindo assim o modo de sentir do grupo. A verdade, sabe-se, era que eu tinha de obedecer a meus impulsos inconscientes a fim de me libertar dos meus terrores, mas para Breton esta explicação era insuficiente. Declarando-se realmente chocado com essa imagem, ele exigia que eu afirmasse não passar esse detalhe escatológico de uma máscara. Fiz cara de riso ao declarar que a merda trazia felicidade e que essa aparição na sua obra surrealista seria o sinal de uma nova chance para todo o movimento. Aliás, a literatura histórica era rica em alusões excrementícias, desde a galinha dos ovos de ouro e da cólica divina de Danaé; mas eu compreendi desde esse dia que estava na presença de intelectuais feitos de papel higiênico, enrijecidos por preconceitos pequenos-burgueses e em quem os arquétipos da moral clássica haviam depositado marcas indeléveis. Eles tinham medo da merda. Da merda e do ânus. O que existe de mais humano, no entanto, e de mais necessário a ser superado? A partir deste instante, eu decidira obcecá-los com o que eles mais temiam.
A partir desse episódio as coisas se complicam. Os surrealistas passam a se aproximar
politicamente do materialismo histórico de Lênin e da arte engajada que Dalí nega, por acreditar que não deveria haver limites para a liberdade artística e, quase como uma criança birrenta, passa a fazer elogios velados a Hitler, pinta o fascista em O enigma de Hitler( 1938) e pinta Lênin com uma enorme bunda no quadro O enigma de Guilherme Tell. ( 1933)
Confrontado pelo grupo, chega a dizer que sua obsessão por Hitler é uma postura estética, paranoica e apocalíptica. Nem Hitler, nem Stalin, dizia Dalí, também recusando-se a olhar a Guerra Civil espanhola como um fenômeno político, comparando-a a um fenômeno biológico, como o canibalismo. Tudo isso resulta em sua expulsão do grupo, que via nessa obsessão uma aproximação perigosa com o fascismo. É então que viaja para os Estados Unidos da América dizendo ser mais surrealista que os surrealistas e repetindo a conhecida máxima " O Surrealismo sou eu".
Os anos nos Estados Unidos
Vive nos EUA de 1940 a 1948, onde entrou em contato com os estudos de física quântica e experimentou outras formas artísticas , como a fotografia, a literatura e o cinema, criando o sonho do protagonista do filme Quando Fala o coração, de Alfred Hitchcock e produzindo o curta Destiny, feito nos estúdios Disney. Nos Estados Unidos tornou-se um verdadeiro artista multimídia.
1- Fotografia surrealista Dalí atomicus,de Dalí e Philippe Halsman; 2- Cena de Destiny (link para o curta no fim do post);3- Cena do filme de Hitchcock; 4- MarilynMao Fotomontagem de 1971 da revista Vogue francesa
Lá também flertou com o mundo das celebridades, vendeu chocolate na televisão, frequentou programas de auditório e sofás de entrevistadores da tarde. Sua excentricidade caía bem às brigas por audiência. Essa habilidade em construir máscaras sociais de sua persona Salvador Dalí trouxe-lhe muitas críticas , mas também muito lucro. Sua excentricidade virou marketing pessoal, o que lhe rendeu espaço garantido na mídia. E ele jamais escondeu isso, veja:
Essa manipulação midiática é tão bem-sucedida, que hoje o maior sucesso da TV espanhola é um seriado que usa as máscaras de Dalí como identidade visual.
De volta pra casa...
Retorna dos EUA diretamente para a Espanha, para a Catalunha e instala-se em Cadaqués, um vilarejo de pescadores a 40 min de Figueres, cidade onde nasceu. A pequena casa de pescadores trazia muitas recordações ao artista, foi lá onde o ainda jovem de 25 anos conheceu Gala, dez anos mais velha e casada com o poeta Paul Éluard , com quem viveu uma paixão instantânea e passou a dividir tudo em sua vida. Envolto nas paisagens mediterrâneas, isolado dos curiosos, em Cadaqués realiza grande parte de sua obra. A partir dos anos 60 começa a pensar na construção do museu sobre as ruínas de um antigo teatro de Figueres.
No museu nos sentimos verdadeiramente dentro de um sonho delirante, barroco, kitsch, surreal. Há barcos que voam, mobílias que surgem dos telhados, nichos místicos, universos distorcidos, gavetas .
Ao trabalhar com o tema do duplo, o artista engana nossos olhos o tempo todo, ouça o que Dalí nos conta a respeito de sua obsessão pelo duplo. Preste atenção na alusão a Castor e Pólux.
No vídeo ele se refere à tela El Torero Alucinógeno, que você pode ver em detalhes aqui: https://br.pinterest.com/pin/60165344995274960/visual-search/?cropSource=6&h=680&w=486&x=10&y=10
E no museu há Gala, sua musa, seu duplo. É no corpo de Gala que Dalí projeta toda sua ambiguidade sexual. É a Nossa senhora chorando sob a cruz de Cristo, é a musa que está sentada ao lado do artista na borda do teto, é a mulher que ele inventa , que ele constrói e desconstrói, é onipresente em sua obra e no Museu.
E está no quadro que me impressionou pelo inusitado da situação. Não sei se vou conseguir mostrar aqui, mas ainda no térreo, sob a cúpula , a gente vê um enorme painel com Gala nua e de costas. Mas quando vamos fotografar, ela se torna Abraham Lincoln (!). É incrível!
Gala é também a Leda atômica ( 1949), mãe dos inseparáveis gêmeos Castor e Pólux , um mortal e o outro imortal, representados sempre pelo capacete gaulês que Dalí usa no vídeo. Vamos observar esse quadro um pouco mais atentamente:
Nele, tudo flutua, até o mar. É possível ter essa certeza observando as sombras. Gala é Leda, o cisne é Zeus, mas perceba que eles não se tocam. Há duas sombras de ovos. Conta a lenda que Zeus, atraído por Leda, mas sabendo ser ela casada com Tíndaro, rei de Creta, decidiu se disfarçar de cisne e se aproximar da mulher enquanto ela se banhava no rio. Leda se encanta com a beleza do cisne e o põe no colo. Semanas mais tarde expele dois ovos, em cada um deles há um filho de Zeus e outro de Tíndaro, portanto, um mortal e outro imortal. Dos ovos nascem os gêmeos Pólux e Castor, os gêmeos inseparáveis, tais como os dois Salvadores da vida real. Tudo aqui é bem freudiano, né? E em relação à técnica utilizada no quadro? O que dizer dessa beleza? Seria o A um símbolo atômico? O fato de nada se tocar seria uma referência à física das partículas atômicas com a qual Dalí teve contato em seus tempos estadunidenses ? E a proporção áurea existente no quadro não reafirma a natureza divina de Gala, o domínio técnico do pintor e ao mesmo tempo, seu amor à matemática ? E tanto há a descobrir nesse universo ! Poderíamos pensar que as paisagens lunares existentes nos quadros não seriam tão lunares assim, se conhecêssemos Cadaqués, a pequena vila de pescadores onde Dalí passou sua infância e onde criou muito de sua obra.
Na saída do museu ainda passamos pela exposição de joias surrealistas, uma preciosidade em todos os sentidos!
Haveria muita coisa pra dizer, descobrir, pensar sobre Salvador Dalí. Eu mesma sempre me pergunto se é possível discordar ideologicamente de um artista e amar sua obra e sempre que tenho a tendência a dizer sim, é possível, visito Dalí , me perco de amores e respondo que não. Aí fico pensando seriamente nos ditados antigos e repito comigo que o que ele diz não é o que desenha. O que desenha é o interdito, o reprimido, aquilo que do fundo dos recônditos mais escondidos conversa diretamente com nossos medos, desejos, sonhos, porque somos feitos da mesma matéria, somos todos seres desejantes, delirantes. E a arte sempre vem pra nos explicar. Era isso que eu vinha pensando no trem, de volta pra Barcelona, ainda sonhando acordada.
Links Interessantes:
1- Aqui você pode ver Dalí vivo e interagindo com os visitantes do museu , no projeto Dalí vive. https://www.youtube.com/watch?time_continue=5&v=BIDaxl4xqJ4&feature=emb_logo
2- Aqui um game surrealista bem legal, chamado Back to bed:
3- Aqui um link pra resenha da autobiografia de Dalí : https://www.recantodasletras.com.br/resenhasdelivros/6231
4- Aqui o curta Destiny, feito pelos Estúdios Disney, lindíssimo! Era sucesso nas minhas aulas! https://www.youtube.com/watch?v=y_TlaxmOKqs
5- Esquecimento imperdoável!! Aqui vai o link para a visita virtual :
Mais um texto rico em comentários e conhecimento. A descrição do Museu é bastante real dando a impressão impactante que causa ao visitante. Muito adequada a descrição do quadro 'Sonho provocado pelo voo de uma abelha...', de 1944; a explicação dos detalhes auxiliam a compreensão da obra. Igualmente à descrição interpretativa do quadro 'Lêda atômica'; lembrando a 'ponte' com a mitologia, com Zeus. Adorei a transposição do tempo quando diz'...se, estando vivo, seria candidato ao cancelamento nas redes sociais...'. Perfeito.
Não sei se é o termo mais apropriado, em se tratando de uma postagem sobre Dalí, mas na minha humilde opinião seu texto está genial.