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Foto do escritorMônica Cyríaco

Chico Buarque, patrimônio da Língua Portuguesa.

Atualizado: 25 de ago. de 2020


No mês passado recebemos a importante notícia de que Chico Buarque de Holanda foi o vencedor do Prêmio Camões de Literatura 2019, que tem como objetivo consagrar um autor de Língua Portuguesa que tenha contribuído para o enriquecimento do patrimônio literário e cultural do idioma através do conjunto de sua obra. Em nota, o júri disse que escolheu Chico tanto pela qualidade de sua obra, quanto por sua "contribuição para a formação cultural de diferentes gerações em todos os países onde se fala a língua portuguesa". Os jurados destacaram ainda o "caráter multifacetado" de seu trabalho, que passa pela poesia, o teatro e o romance. "Seu trabalho atravessou fronteiras e mantém-se como uma referência fundamental da cultura do mundo contemporâneo".


Uma notícia dessas nos tempos difíceis por que passa a cultura brasileira precisa ser muito comemorada, não acham? Por isso , decidi fazer esse texto, tentando apresentar brevemente aquele que dispensa apresentações , mostrar algumas situações em que trabalhei com textos do Chico em sala de aula, trazendo algumas aproximações e possíveis diálogos entre o autor e sua inserção na linha da cultura brasileira contemporânea.


Ele anda pra frente arrastando a tradição, diz Caetano Veloso


O retrato de Chico por Di Cavalcanti diz muito sobre a obra do nosso artista. Chico é herdeiro da tradição lírica dos modernistas, como Drummond, Jorge de Lima, João Cabral, Guimarães Rosa e Vinícius. Nascido em 44, Chico é adolescente numa época em que as utopias de futuro no Brasil pareciam se concretizar : na economia, o desenvolvimentismo de J.K. prometia um crescimento de 50 anos em 5, com a abertura de estradas, consolidação da indústria automobilística, a construção de Brasília, entre outras metas. Na cultura, a década vê crescer a indústria cultural, com o rádio, que já cobria todo o território nacional, rivalizando com a inauguração da primeira emissora de TV , a Tupi, a abertura salas de cinema, além do surgimento da Bossa-Nova, estilo musical que o Brasil passa a exportar. Adolescente, ouve Noel Rosa; jovem , descobre Tom Jobim. Nesse cenário de efervescência, a intelectualidade brasileira consolida um imaginário de Brasil e de suas brasilidades, que já vinha sendo construído por Gilberto Freyre e Sergio Buarque de Holanda anos antes e Caio Prado Júnior, um pouco depois. O Brasil seria moderno, democrático, mas a utopia durou pouco.


"Aquele Brasil foi cortado evidentemente em 64. Além da tortura, de todos os horrores de que eu poderia falar, houve um emburrecimento do país. A perspectiva do país foi dissipada pelo golpe." , afirma numa entrevista em 1999.


Chico Buarque surge como artista logo após o golpe de 64. Formado com uma visão de promessa civilizacional que fora interrompida com o golpe civil-militar de 1964, viverá essa contradição por toda sua obra: a utopia e o desencanto se desdobrarão em um lirismo nostálgico com um projeto de país que se frustrou, ficou apenas no desejo.


Nenhum outro artista brasileiro atravessou tão perfeitamente a história do Brasil de 64 até nossos dias. O jornalista Fernando de Barros e Silva afirma sobre a obra de Chico Buarque que

Ela não apenas registra a nossa história, como freqüentemente a revela para nós sob ângulos insuspeitados, amarrando e comunicando a experiência coletiva aos segredos e abismos da subjetividade de cada um. É o inconsciente do país que parece falar na rede simbólica que Chico nos estendeu ao longo dos anos.


A partir do golpe, enquanto vivíamos uma noite interminável, o artista catalisou em suas obras todo o anseio de liberdade que havia no país. Escreveu peças de teatro, participou de trilhas sonoras de filmes, peças e novelas, lançou três álbuns que venderam muito, driblou a censura inventando pseudônimos e encarnou o irreverente malandro carioca no imaginário coletivo. São dessa época as obras que até hoje teimam em colocar Chico Buarque na gaveta dos escritores de protesto: As peças Morte e Vida Severina ( 1965), Roda Viva ( 1968) , Gota D'água ( 1974), Ópera do Malandro ( 1978) e as canções Apesar de você ( 1970), Cálice ( 1973), Acorda , amor ( 1974) , Meu caro amigo (1976), presentes nos álbuns Sinal Fechado ( 1974) Meus caros amigos ( 1976) e Chico Buarque ( 1978) . As obras dessa década fazem sucesso e se tornam clássicas, pois naquele momento ainda alimentam a realização da promessa de que um outro dia viria, "apesar de você".


No entanto, partir de 1980, a complexidade da sociedade capitalista globalizada , fragmentada em discursos e estilos, torna anacrônica uma tentativa de interpretar o Brasil a partir das bases de 1968. E a obra de Chico Buarque vai acompanhar essa mudança de parâmetros na nossa sociedade, tornando-se cada vez mais desencantada com o futuro prometido, abandonando pouco a pouco a promessa de um outro dia. É fascinante acompanhar pelas obras a modificação do Brasil.


Em 1980, essa frustração já pode ser percebida na canção Bye Bye , Brasil: o eu lírico, numa ligação telefônica de ritmo vertiginoso, precisa falar tudo o que quer muito rapidamente, está num telefone público e suas fichas estão caindo ( só quem nasceu antes de 1990 sabe bem o que era isso, veja em https://www.recantodasletras.com.br/artigos/4429666 ). Deslocado de seu lugar de origem , sente saudades de tudo , Eu tenho saudades da nossa canção Saudades de roça e sertão ao mesmo tempo em que denuncia as contradições do Brasil nos anos 80, unindo os campos semânticos da modernidade , usina, fliperama, calça lee, Bee Gees, ao do Brasil arcaico, orixá , chefe dos parintintins, doença, pane no ventilador, Tabariz. Outro incrível recurso é colocar lado a lado palavras como toró, jiló, night and day, okay, bye bye, e expressões como pintou um lance, tô a fim de encarar, bateu uma saudade. Na última estrofe , fica claro o desencanto : A última ficha caiu, Bye bye Brasil, aquela aquarela mudou, eu vi um Brasil na TV, no entanto, resta ainda uma pitada de esperança, quase um pedido, Assim que o inverno passar, eu quero voltar, podes crer, com a benção do nosso senhor, o sol nunca mais vai se pôr. Ouça a música na íntegra!



Bye bye, Brasil A última ficha caiu Eu penso em vocês night and day Explica que tá tudo okay Eu só ando dentro da lei Eu quero voltar, podes crer Eu vi um Brasil na tevê Peguei uma doença em Belém Agora já tá tudo bem Mas a ligação tá no fim Tem um japonês trás de mim Aquela aquarela mudou Na estrada peguei uma cor Capaz de cair um toró Estou me sentindo um jiló Eu tenho tesão é no mar Assim que o inverno passar Bateu uma saudade de ti Tô a fim de encarar um siri Com a benção do Nosso Senhor O sol nunca mais vai se pôr


Por ocasião do lançamento de seu álbum As cidades ( 1998) , afirma numa entrevista à Folha de São Paulo, quando questionado sobre o lirismo desencantado que parecia brotar das músicas daquele álbum:


Talvez esse desencanto seja uma constante na minha música. Quando essa tristeza foi assinalada por mais de uma pessoa, como uma característica desse disco, eu me perguntei se essa não é uma característica permanente da minha obra. Eu não tenho discos especialmente alegres


A partir dos anos 90 inicia sua incursão pela literatura, lançando os livros Estorvo ( 1991), Benjamin ( 1995) , Budapeste ( 2003), Tantas palavras ( 2006) , Leite derramado ( 2009) e O irmão alemão ( 2014). Cada vez mais a literatura atravessa e se mescla a suas canções. Em Paratodos ( 1993) , fez seu inventário musical e nele ainda encontramos uma MPB idealizada, que hoje já não mais existe. Talvez por perceber isso, Chico tenha dito há algum tempo que a canção , como a conhecemos hoje, está fadada a acabar, que é uma manifestação artística do século XX.

O meu pai era paulista Meu avô, pernambucano O meu bisavô, mineiro Meu tataravô, baiano Vou na estrada há muitos anos Sou um artista brasileiro


Suas composições vão ficando cada vez mais polifônicas, abandonando aquela ideia de que se poderia interpretar um único Brasil, vamos acompanhando um artista que vai demonstrando cada vez mais um mal-estar no mundo, desmascarando o fosso que no qual a sociedade brasileira se divide. O mundo mudou muito, a música também, o artista sensível observa e assimila o novo, sempre apoiado na tradição , torna-se mais intimista, mais lírico e introspectivo, compondo músicas com muito mais complexidades harmônicas, cada vez mais influenciado por Tom Jobim, seu maestro soberano. Jorge Chaloub fala desse Chico:


O Chico contemporâneo, dos seus últimos discos, é aquele que leva a forma-canção a seus extremos, explorando ao máximo suas possibilidades rítmicas melódicas e harmônicas. As letras aparecem cada vez mais complexas, sem a linearidade de outrora, quando ainda podíamos identificar grandes narrativas no cancioneiro buarquiano. Chico avança ainda mais na forma canção, nessa forma musical definida, não pela sobreposição entre elementos autônomos, música e letra, mas justamente pela fina interação e quase indiscernibilidade entre ambas, em simbiose na qual não somente a música condiciona a letra, mas também a letra sugere caminhos melódicos, harmônicos e rítmicos .


Ao comentar o novo álbum Caravanas, Chaloub afirma que o esforço parece ser o de emular na construção do disco a mesma pluralidade de vozes presente no Brasil contemporâneo, que não mais comportaria o intelectual-mpbista como intérprete privilegiado dos desígnios da sociedade (...) As transformações não passariam, todavia, pela supressão da tradição, mas pela sua tensa composição com o moderno


Se quisermos conhecer o Brasil e a cultura brasileira de 68 pra cá, temos que buscar a obra de Chico Buarque, assim como fazemos com Machado no século XIX e Drummond no séc. XX . A qualidade de sua arte: as peças e os romances e , principalmente, sua palavra cantada devem estar presentes em nossos planejamentos de Língua Portuguesa/Literatura Brasileira.


As possibilidades que a obra de Chico trazem para um trabalho intertextual e interdisciplinar em sala de aula são inúmeras. Vou apresentar algumas propostas no próximo post. Por ora, importa mesmo é dar parabéns duplamente, pelo prêmio e por seu aniversário dia 19. E você?Já ouviu Chico Buarque hoje?


Links interessantes :


https://www1.folha.uol.com.br/fsp/ilustrad/fq18039918.htm entrevista com CB no lançamento de as cidades, 1999

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