Ano passado recebi um convite muito carinhoso de uma querida amiga , ela se casaria no México, em abril. Sabe aquele tipo de convite que não poderia jamais ser recusado? Começamos a viajar na nossa viagem em Outubro. 5 noites na Cidade do México e 3 noites em Playa del Carmen, onde seria o casamento. Parecia suficiente, mas foi pura ilusão, hoje penso que para a Cidade do México eu deveria ter deixado pelo menos 7 noites, deixaria mais duas noites para conhecer Oaxaca e Puebla, duas cidades próximas à CDMX e, em Playa del Carmen, no mínimo mais uma noite para conhecer as ruínas mayas e ao menos um cenote. No entanto compreendo essa vacilada, já que as atenções ao planejar a viagem estavam todas centradas no casamento da minha amiga. Eu me perdoo.
Dito isso, vou compartilhar minhas impressões desses dias presenciais no México, porque eu gosto de, sempre que possível, conjugar livros e viagens, essa postura me ajuda a viajar na viagem bem antes do embarque, assim como esses posts me ajudam a prolongar as experiências para além dos limites das diárias.
Eu amei a Cidade do México! Comecei a visita no Domingo por Coyoacán , um distrito da Cidade que fica a uma meia hora de carro da Zona Rosa, onde se localizava meu hotel.
Coyoacán : Aqui fica o
cultural da Cidade do México
Caminhando por aquelas ruas que eu já conhecia das páginas dos livros, algumas vezes pensei que naquele distrito cabia o México inteirinho. Mas logo me censurei, como poderia pensar assim, se era meu primeiro dia na cidade? Pois bem , hoje, escrevendo sobre as memórias recentes, vejo que minha intuição esteve bastante próxima àquela impressão inicial. Ali em Coyoacán encontrei a essência da Cidade do México, o aspecto multicultural que pude experimentar nas outras ruas e bairros da cidade, o orgulho da cultura que os mexicanos têm, a alegria em todas as suas manifestações, até mesmo a diferença social visível em todos os países da América Latina e que ali não é diferente.
Coyoacán é pura literatura!! O distrito foi cenário de três excelentes romances que li e indico aqui: Los años com Laura Días ( 1999), de Carlos Fuentes, O homem que amava os cachorros ( 2009), de Leonardo Padura e A cozinheira de Frida ( 2021), de Florencia Etcheves. Imaginem só a sensação de imersão que experimentei!
Ali estão as residências de Frida Khalo e Diego Rivera_ A Casa Azul , a casa de Trotsky, que após sair da União Soviética esteve na Turquia, França e Noruega e acabou vivendo seus últimos anos de vida no México e o Museu Anahuacalli, um museu de arte mexicana idealizado por Diego Rivera. Ali também estão as instituições de ensino Universidade Nacional Autônoma do México e a Universidade Autônoma Metropolitana, ou seja, é um distrito repleto de história, cultura e arte. Vou comentar as duas visitas a casas-museu que fiz, os ingressos para a visita à Casa Azul foram comprados pela internet, já o ingresso à casa de Trotsky comprei na hora.
A casa-museu de Trotsky foi uma grande emoção, parecia eu que tinha voltado àqueles instantes de suspense antes do cruel assassinato do líder, tão perfeitamente descritos no livro de Padura e narrado com grande conhecimento pelo guia que nos levou casa a dentro. Ali viveram Trotsky, sua esposa Natália Sedova e seu neto Esteban Volkov e foi onde o líder sofreu duas tentativas de assassinato, sendo que a última foi bem sucedida. A visita é curta, começa pelo quintal bem arborizado, onde Trotsky criava coelhos e onde se localizavam os alojamentos dos guardas. Podemos ver as mudanças na planta original, com a construção de torres de guarda com guaritas , muros que foram aumentados e a troca de portas e janelas por outras mais estreitas e com materiais mais resistentes, para aumentar a segurança do local depois do primeiro atentado.
O guia ia nos trazendo informações importantes para que pudéssemos entender a presença do líder russo naquele país, as questões da política mundial e a inserção do México naquele contexto. E, principalmente, por que ele veio parar em Coyoacán. Imperdível!!
A casa é de uma simplicidade sem par, ainda é possível ver os buracos de bala nos quartos, rentes às camas, na sala, nos vitrais das janelas. Os móveis, muito modestos, ainda estão em seus cômodos originais e no escritório , local do assassinato, ainda vemos papéis sobre a escrivaninha e a estante de livros.
Talvez devido àquele mecanismo de autodefesa, quando os disparos o acordaram pensou que se tratava de fogos de artifícios e de rojões disparados numa feira que naqueles dias se celebrava em Coyoacán. Só compreendeu que eram de fato tiros e que vinham de muito perto quando Natália o empurrou da cama, atirando-o ao chão. Nessa altura pensou: teria chegado a hora de partir, assim, daquele jeito, usando um pijama e encolhido contra uma parede? /.../
Apesar de várias pessoas lhe terem descrito o que havia por trás dos muros, naquela tarde Jacques Mornard surpreendeu-se ao ver a disposição do pátio central da fortaleza. Sua primeira impressão foi a de que tinha entrado no claustro de um mosteiro. À sua esquerda, perto do muro, estavam enfileiradas as coelheiras. A parte não asfaltada fora coberta de plantas – cactos, em sua maior parte –, entre as quais ainda se viam os efeitos da invasão massiva verificada há alguns dias. A casa principal, à direita, era menor e mais modesta do que imaginara. Tinha as janelas fechadas e nas paredes estava gravado o impacto das balas disparadas dias antes. Junto de uma pequena edificação, que identificou como o dormitório dos guardas, erguia-se uma árvore de onde, supôs, o assaltante da metralhadora mantivera o pátio debaixo de fogo. Como era possível que aquele assalto tivesse falhado?
( PADURA, Leonardo. O homem que amava os cachorros, p. 3)
As praças arborizadas circundam dois dos mercados locais , sendo um totalmente dedicado ao artesanato. Naquelas praças ouvimos música, sinos, vozerio. As feirinhas de artesanato ocupam todas elas.
Na praça do Centenário está a casa de Hernan Cortés que, durante a dominação espanhola , fez de Coyoacán o centro da capital da Nova Espanha, enquanto exterminava os astecas. Por ter sido o primeiro assentamento dos espanhóis em terras mexicanas, encontramos no distrito muitas casas que ainda preservam o estilo colonial, além de outros monumentos ligados à dominação espanhola, como a Igreja de São João Batista.
Tudo é muito próximo, dá pra conhecer caminhando sem pressa, coloquei os principais pontos de interesse de Coyoacán no mapa a seguir.
Bem pertinho da Casa Azul fica o Mercado de Coyoacán, onde a cozinheira Nayeli chegou e onde comprava seus perfumados e picantes temperos. O Mercado é bem antigo, ali turistas e locais podem apreciar um pouco da gastronomia local, comprar palo santo, umas ervas para banho, incenso de copal, flores, velas, apreciar a decoração com aquelas bandeirinhas do desenho da Disney. Aliás, o cenário de fundo de Viva la Vida, da Disney, lembra demais Coyoacán.
Frida era uma metáfora do México: colorida, dinâmica, mas que sofre com grandes feridas
Francisco Haghenbec ( escritor mexicano)
A CASA AZUL
Como já disse, minha sensação era a de conhecer a Casa Azul há muito tempo, mas quando a vi, lembrei da curiosidade de Nayeli pelo prédio, que se destaca de todos os outros na redondeza. Aqui, a personagem chega a Coyoacán e avista pela primeira vez a casa, que seria parte de sua vida dali em diante:
Decidiu não voltar ao parque e continuou caminhando até uma esquina. à sua direita uma casa enorme lhe chamou a atenção. Estava bem no cruzamento de duas ruas pouco movimentadas. Quatro janelões retangulares davam para uma das ruas; para a outra, outras quatro janelas e uma porta de duas folhas. Exceto pelas bordas, que eram vermelhas, as paredes estavam pintadas de um azul intenso.
Ela atravessou pelo meio da rua, a curiosidade venceu o medo. Exceto um , todos os outros janelões estavam cobertos por cortinas brancas de renda. Nayeli Cuz quis expiar e, sem sequer disfarçar, passou a menos de um metro da janela aberta. Do outro lado, havia uma mulher. Seu rosto parecia abrigar toda a tristeza do mundo.
(Etcheves, Florencia. A cozinheira de Frida, p. 108)
Logo na entrada da casa, a gente vê os ex-votos, tradição da arte popular e religiosa muito intensa no México e também no interior do Brasil ( me lembrei muito de Congonhas). Os ex-votos mexicanos têm três características básicas: a cena sempre retrata a situação enfrentada pelo fiel e que exigiu a intermediação divina, no topo da imagem, normalmente flutuando, o artista pinta o santo que ajudou a pessoa naquela situação. Por fim, uma legenda, abaixo da pintura, costuma explicá-la e conter os nomes dos fiéis que tiveram o pedido atendido e que mandaram fazer a oferenda em forma de arte.Esse ex-voto foi criado por Frida fazendo alusão a seu acidente:
Na legenda, encontramos o seguinte trecho : Os senhores Guilhermo Kahlo e Matilde C. de Kahlo dão graças a Nossa Senhora das Dores por salvar nossa filha de um acidente que ocorreu em 1925, na esquina de Cuahutemozin e Calzada de Tlalpah
É interessante que ela cria esse ex-voto muitos anos depois de seu acidente e assumindo a voz dos pais. No link a seguir há um artigo em que se pode ver mais sobre a arte dos ex-votos no México: https://www.360meridianos.com/especial/ex-votos-arte-mexico#:~:text=Ex%2Dvotos%20al%C3%A9m%20da%20arte%20popular&text=Na%20obra%20%E2%80%9CRetablo%E2%80%9D%2C%20de,fazer%20pelo%20menos%2030%20cirurgias.
Pintados, esculpidos ou modelados, Frida pega essa tradição dos ex-votos e a ressignifica , utilizando seus próprios moldes, como o colete de gesso pintado e exposto logo na entrada do museu. Na casa também vemos fotos de sua vida em família, as obras da pintora, suas roupas, os cômodos, o jardim, a natureza.
Tive uma especial surpresa ao visitar a cozinha, lugar que habitei pela minha imaginação nas páginas do livro da argentina Etcheves, aquela cozinha amarela onde Nayeli passou parte de sua vida preparando moles, quesadillas, pozoles, buñuelos del cielo... coisa linda, gente!
Os vestidos usados pela artista são mais um encanto nessa visita.
São todos vestidos de tehuana, mulheres da comunidade indígena de Tehuantepec, em Oaxaca. E por que Frida escolhe justamente fazer referência ao figurino das tehuanas durante parte de sua vida ? Segundo o linguista e historiador Victor Cata, secretário de cultura daquele estado, Frida e Diego visitam Oaxaca nos anos 30 e conhecem de perto como aquela sociedade estava organizada, completamente diferente do que se via em outros lugares do México. Ali as mulheres exerciam um protagonismo de fato, já que muitas eram viúvas ou solteiras, devido ao recrutamento dos homens para as guerras do século XIX. O historiador afirma que desde o séc. XVI já havia registros de viagens comerciais de mulheres , de Oaxaca até o território que hoje é conhecido como Guatemala, elas eram chamadas de las viajeras. No início do século XX, a chegada de uma linha férrea promove um grande avanço no comércio e as mulheres deslancham, a ponto de o contexto dos anos 30 mostrar ao casal de artistas exemplos de mulheres comerciantes, empreendedoras independentes e com autoridade, praticamente um matriarcado que mudou muito pouco até os nossos dias. Veja essa entrevista do historiador a BBC News :
Mais uma vez voltei ao livro da argentina Florencia Etcheves, pois são as mulheres tehuanas, comerciantes espertas e descoladas, que acolhem e orientam Nayeli durante a viagem de trem de Oaxaca à Cidade do México.
Mas o ponto alto da minha visita, porém, foi o quadro Natureza Morta: Viva la vida! Juro, me emocionei demais diante dele e depois descobri que não fui a única...
O quadro repleto de melancias vermelhas e cheias de sementes é uma natureza morta que celebra a vida! Foi pintado alguns anos antes, mas a legenda do quadro foi feita por Frida apenas 8 dias antes da sua morte. Saber disso me causou uma profunda reflexão sobre a morte e, principalmente, uma admiração grande por essa mulher, capaz de afirmar a vida estando tão fragilizada no fim. O quadro é tão poderoso que inspirou Chris Martin a escrever a música que deu nome ao álbum do Coldplay Viva la Vida. Ele visitou a Casa Azul e na época afirmou Somos seres humanos com emoções e vamos todos morrer, e é uma estupidez o que temos que aguentar todos os dias. Depois dessa visita, o grupo saiu do preto e branco melancólico para o azul penetrante das paredes e pinturas de Frida Kahlo. Calcanhoto, Madonna, Cold play, Patti Smith, todos esses são artistas que saíram profundamente impactados pela visita à Casa Azul. No fim da exposição, fotografei esse poema que Smith fez , após sua visita. Lindo !
A casa toda reflete a emoção de Frida em seus autorretratos, seus medos, suas dores , seu processo criativo, sua luta política e seu amor por Diego Rivera. A busca por sua identidade profunda a fez produzir autorretratos incessantemente, o mais simbólico é esse , em que vemos as duas identidades culturais da artista, a européia e a indígena que não se olham, mas estão ligadas por artérias , com seus corações expostos e suas mãos dadas. A tehuana, que tem o coração inteiro, segura a foto de Diego na mesma altura em que a europeia, de coração partido, segura a tesoura e deixa escorrer o sangue sobre o vestido branco. Uma está sentada de pernas abertas e a outra está bem comportada, ambas olham na mesma direção, têm os rostos sérios , pois há dor, mas há também empatia e solidariedade que se pode confirmar pela posição das mãos ( a mão da tehuana segura a mão da europeia de coração partido). São opostos complementares.
Da casa de Frida, retirei três temas da cultura mexicana que se repetiriam durante minhas outras visitas : o tema do duplo, representado pelo quadro Dos Fridas, o tema do matriarcado, que retornaria forte na visita que faríamos a Teotihuacan no dia seguinte, e o Dia dos Mortos, em que a morte é a afirmação da vida.
Viva la vida!
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