Instruções: Como sobreviver em um conto de fadas
- Mônica Cyríaco
- 5 de nov. de 2021
- 7 min de leitura
Atualizado: 22 de dez. de 2022
Agora apresento o último texto dessa série de postagens sobre recomeço. É um poema do escritor britânico Neil Gaiman chamado Instruções.
Mas antes de ler o poema, gostaria de fazer um esclarecimento. Eu não acredito em manuais, esse título foi mais uma provocação, uma tentativa de captar sua atenção para a possibilidade de novas reflexões fora das redes sociais, uma tentativa de estimular sua atenção para novos e antigos textos que ficaram parados em sua estante em listas para ler depois e que vão se acumulando, ou mesmo uma sugestão para que você pudesse criar suas listas de textos fundamentais e usá-los num projeto escolar, numa terapia ou, simplesmente, refletir sobre seu próprio momento. Sim , porque estamos todos precisando falar sobre esse momento, mas não temos tido vontade.
Cada um de nós terá uma história diferente pra contar. Há os que foram pra rua aglomerar
( e postaram fotos! ), há os que ficaram em casa com raiva da aglomeração do outro. Houve quem jamais teve direito a ficar em casa, pois precisou sair para o trabalho. Há quem voltou antes e quem voltou no último momento. Houve cancelamentos de ambas as partes. Há quem queira continuar afastado, há quem ainda viva a sensação de estar sozinho, mesmo após o retorno das atividades "normais", sentindo-se excluído e há os que temem que isso aconteça pela perda da intimidade. Depois de tanto tempo separados, as idealizações que fizemos das nossas relações perderam o sentido? Tudo está confuso, embaralhado, como vamos voltar? Acostumados ao ensimesmamento, será que vamos conseguir nos abrir de novo?
No twitter, vi a seguinte pergunta : Quando foi a última vez que você fez algo pela primeira vez? Na mesma semana , vi meu netinho comendo banana pela primeira vez. Uma explosão de sensações deve ter acontecido naquela cabecinha... senti inveja.
Paradoxalmente, 2021 tem sido um ano mais duro que 2020, a massa de que somos feitos endureceu. Apesar de termos vacina, todo mês aparece uma variante, as notícias do mundo e especialmente do Brasil não são animadoras. Ano passado sonhávamos com uma semana de carnaval quando tudo passasse. Esse ano, pensar em uma semana de carnaval me dá medo e preguiça, as pessoas estão com tanta fome que não sobra espaço pra sonhar. No Brasil, particularmente , tem sido difícil não virar pedra. Por isso precisamos tanto das 9 musas gregas! https://mitologiagrega.net.br/9-musas-do-olimpo/
Então, agora sim, retornemos ao último texto. É um poema com tamanho lirismo, que virou um livro infantil, publicado no Brasil pela editora Rocco, mas esgotado, infelizmente. É um poema com instruções de como sobreviver em um Conto de Fadas. Transcrevo o poema em Inglês e sua tradução.
"Instructions" by Neil Gaiman

Touch the wooden gate in the wall you never
saw before.
Say "please" before you open the latch,
go through,
walk down the path.
A red metal imp hangs from the green-painted
front door,
as a knocker,
do not touch it; it will bite your fingers.
Walk through the house. Take nothing. Eat
nothing.
However, if any creature tells you that it hungers,
feed it.
If it tells you that it is dirty,
clean it.
If it cries to you that it hurts,
if you can,
ease its pain.
From the back garden you will be able to see the
wild wood.
The deep well you walk past leads to Winter's
realm;
there is another land at the bottom of it.
If you turn around here,
you can walk back, safely;
you will lose no face. I will think no less of you.
Once through the garden you will be in the
wood.
The trees are old. Eyes peer from the under-
growth.
Beneath a twisted oak sits an old woman. She
may ask for something;
give it to her. She
will point the way to the castle.
Inside it are three princesses.
Do not trust the youngest. Walk on.
In the clearing beyond the castle the twelve
months sit about a fire,
warming their feet, exchanging tales.
They may do favors for you, if you are polite.
You may pick strawberries in December's frost.
Trust the wolves, but do not tell them where
you are going.
The river can be crossed by the ferry. The ferry-
man will take you.
(The answer to his question is this:
If he hands the oar to his passenger, he will be free to
leave the boat.
Only tell him this from a safe distance.)
If an eagle gives you a feather, keep it safe.
Remember: that giants sleep too soundly; that
witches are often betrayed by their appetites;
dragons have one soft spot, somewhere, always;
hearts can be well-hidden,
and you betray them with your tongue.
Do not be jealous of your sister.
Know that diamonds and roses
are as uncomfortable when they tumble from
one's lips as toads and frogs:
colder, too, and sharper, and they cut.
Remember your name.
Do not lose hope — what you seek will be found.
Trust ghosts. Trust those that you have helped
to help you in their turn.
Trust dreams.
Trust your heart, and trust your story.
When you come back, return the way you came.
Favors will be returned, debts will be repaid.
Do not forget your manners.
Do not look back.
Ride the wise eagle (you shall not fall).
Ride the silver fish (you will not drown).
Ride the grey wolf (hold tightly to his fur).
There is a worm at the heart of the tower; that is
why it will not stand.
When you reach the little house, the place your
journey started,
you will recognize it, although it will seem
much smaller than you remember.
Walk up the path, and through the garden gate
you never saw before but once.
And then go home. Or make a home.
And rest
Instruções, Neil Gaiman
Toque o portão de madeira na parede que você nunca
viu antes.
Diga “por favor” antes de você abrir o trinco,
atravesse,
desça o caminho.
Um diabrete de metal vermelho se pendura da porta da frente
pintada de verde,
como uma aldraba,
não toque ele; ele morderá seus dedos.
Percorra a casa. Pegue nada. Coma
nada.
No entanto, se alguma criatura dizer-lhe que têm fome,
alimente-a.
Se ela dizer que está suja,
limpe-a.
Se ela chorar e disser que dói,
se você puder,
alivie sua dor.
Do jardim dos fundos você poderá ver a
floresta selvagem.
O profundo poço pelo qual você passa conduz ao reino
do inverno;
há outra terra no fundo dele.
Se você virar aqui,
você pode voltar, seguramente;
você não perderá nada. Não vou pensar menos de você.
Uma vez através do jardim você estará na
floresta.
As árvores são velhas. Olhos espiam dos
arbustos.
Debaixo de um carvalho retorcido senta-se uma anciã. Ela
pode pedir alguma coisa;
dê a ela. Ela
irá apontar o caminho para o castelo.
Dentro dele há três princesas.
Não confie na mais jovem. Siga em frente.
Na clareira além do castelo os doze
meses sentam-se ao redor de uma fogueira,
aquecendo seus pés, trocando contos.
Eles podem fazer favores para você, se você for educado.
Você pode colher morangos na geada de Dezembro.
Confie nos lobos, mas não diga a eles onde
você está indo.
O rio pode ser cruzado pela balsa. O balseiro
vai levá-lo.
(A resposta à sua pergunta é essa:
Se ele der o remo ao seu passageiro, ele será livre para
deixar o barco.
Apenas diga-lhe isto de uma distância segura.)
Se uma águia lhe der uma pena, mantenha-a segura.
Lembre-se: que os gigantes dormem ruidosamente; que
bruxas são muitas vezes traídas por seus apetites;
dragões tem um ponto fraco, em algum lugar, sempre;
corações podem ser bem escondidos,
e você os trai com sua língua.
Não tenha ciúmes de sua irmã.
Saiba que diamantes e rosas
são tão desconfortáveis quando eles tombam de
algum lábio como sapos e rãs:
gelados, também, e afiados, e eles cortam.
Lembre-se de seu nome.
Não perca a esperança – o que você procura será encontrado.
Confie em fantasmas. Confie naqueles que tem ajudado
para ajudá-lo na sua vez.
Confie em seus sonhos.
Confie em seu coração, e confie em sua história.
Quando você voltar, retorne da maneira que você veio.
Favores serão devolvidos, dívidas serão reembolsadas.
Não esqueça de seus modos.
Não olhe para trás.
Monte na águia sábia (você não cairá).
Monte no peixe prateado (você não se afogará).
Monte no lobo cinzento (segure firme em seu pelo).
Há um verme no centro da torre; por isso
que ela não ficará de pé.
Quando você chegar à pequena casa, o lugar onde sua
jornada começou,
você irá reconhecê-la, embora ela pareça
muito menor do que se lembra.
Ande pelo caminho, e atravesse o portão do jardim
que você nunca viu antes, mas apenas uma vez.
E então vá para casa. Ou faça uma casa.
E descanse.
Olhem que lindo esse livro-poema! ( Preciso dizer que eu o tinha na minha sala de leitura do Município, na época em que havia política federal de compras de livros para bibliotecas públicas, pelo programa do PNBE, paralisado desde 2014. )
Aqui um trailer desse livro:
E que instruções, não? Para sobreviver em um Conto de Fadas, você precisa estar atento ao que acontece à sua volta. Há algumas perguntas que a gente pode (se) fazer durante a leitura, buscando uma reflexão mais aprofundada.
Por que o poeta diz que você não será julgado se desviar do poço fundo? Esse julgamento poderia existir? Quem faria esse julgamento?
Por que é uma anciã que aponta o caminho para o castelo? O que poderia significar o castelo?
Por que você deve desconfiar da princesa mais jovem? Você concorda com isso?
O que significaria para você receber favores dos meses do ano?
Qual teria sido a pergunta feita pelo barqueiro para que fosse dada aquela resposta? Por que você teria que se colocar a uma distância segura para responder?
Como diamantes e rosas, sapos e rãs poderiam tombar dos lábios?
Por que será que a casa parecerá menor?
E o portão do jardim? Por que parecerá que você nunca o tinha visto antes? Por que será apenas uma vez?
(Vou fazer essas perguntas ao meu netinho, quando formos ler juntos esse poema).
Das minhas instruções favoritas desse poema, destaco Confie em seu coração, e confie em sua história. E a que me traz mais esperança é
Há um verme no centro da torre; por isso
que ela não ficará de pé.
É isso, sejamos atentos ao próximo, ao nosso caminho, recorramos à nossa história de vida quando a barra pesar e não temamos os monstros, eles sempre têm um ponto fraco, toda torre está corrompida e cairá . O que a vida quer da gente é coragem!

Neil Gaiman é um grande contador de histórias, nascido em 1960. É mais conhecido por ter criado Sandman, o herói de HQ que personifica o sonho, irmão mais novo da Morte, desenvolvido pelo escritor em uma série de 75 HQs, de 1989 a 1996. Também é autor de Coraline e Deuses americanos. Aqui, você pode vê-lo recitando o poema:
Saiba mais sobre o autor nesse link :
Ótima escolha de título para esse último texto e que atende perfeitamente ao que se propõe _uma provocação. Fechou com chave de ouro as postagens sobre “Recomeço”. Parabéns!