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Foto do escritorMônica Cyríaco

La Catrina e as caveirinhas literárias


Dia dos mortos chegando e me dá vontade de escrever sobre o México. A cultura mexicana é muito poética na sua visão de mundo, nas suas dores e resistências, na sua simbologia. O cruzamento entre a rica e milenar cultura dos povos pré-colombianos, organizados em sociedades complexas, e a cultura espanhola de tradição cristã e bélica surge um povo que constrói sua visão de mundo a partir da dualidade, da ancestralidade e da diversidade.

Essa dualidade esteve presente em todos os aspectos culturais que tive a oportunidade de observar naqueles dias na Cidade do México.

O caráter dual da visão de mundo

O aspecto dual na cutura ancestral mexicana está centrada na afirmação da vida a partir da morte. A imagem ao lado, representa a vida e a morte. Se acreditava na ideia de viver para morrer, para assim poder renascer. Ignorava-se o temor cristão da morte, na verdade esta era uma nova etapa que todo homem deveria conhecer.

No sítio arqueológico de Teotihuacan, as pirâmides do Sol e da Lua são dedicadas a deuses diferentes, poderíamos dizer, opostos complementares. A pirâmide do Sol é a maior e está associada ao lugar de moradia do deus Huehueteotl , literalmente deus velho, onde mora a sabedoria. Era representado cheio de rugas, com um incensário na cabeça, pois acreditavam que o fogo viera antes do Sol. No link, a imagem do deus em exposição no Museu de Antropologia:


A pirâmide da Lua, menor e construída primeiro era dedicada à deidade Chalchiuhtlicue, deusa das tempestades , dos lagos, dos oceanos, rios , redemoinhos e padroeira dos nascimentos . Claramente um aspecto do feminino. As duas pirâmides representariam a dualidade perfeita, e até hoje os mexicanos acreditam que a da Lua suga a energia ruim e a do Sol repõe a energia boa.

Preciso falar também da interessante cosmogonia encontrada no sítio arqueológico. Para eles, o Cosmo era dividido em três partes: O Céu, a Terra e O submundo.

A cidade está ordenada com o céu, daí os alinhamentos astronômicos entre as pirâmides e as estrelas, principalmente com o Sol, no solstício_ quando o Sol se põe exatamente à frente da pirâmide_ e no equinócio da primavera, quando os mexicanos comemoram os primeiros raios de luz e pedem energia boa para o ano todo. No link abaixo, a celebração do equinócio:


As pirâmides também estão voltadas para a Terra e não são pirâmides, não no aspecto tradicional destas. Explico: elas foram construídas mimetizando um monte sagrado para os povos antigos, a montanha de Cerro Gordo ,observe :

Observando o formato da montanha , percebemos bem a intenção de aliar a construção da pirâmide da Lua, a primeira a ser construída na cidade, ao elemento natural sagrado para aqueles povos.

E, por fim, o submundo, representado pelo túnel existente sob a pirâmide da serpente emplumada. Subterrâneo, escuro, úmido e frio era o lugar da morte, mas também da criação, de onde tudo surge. A descoberta de oferendas em forma de esculturas, pedras, conchas ainda em fase de interpretação, sugerem que as divindades estavam no submundo, possivelmente um local sagrado de funeral, de iniciação e de transmissão de poder, não entravam ali pessoas comuns.

As civilizações astecas e maias, posteriores à existência de Teotihuacan, praticavam rituais religiosos de sacrifícios de animais e de humanos, assim como zapotecas, nahuatls, totonecas, era um costume comum aos povos pré-hispânicos Os crânios eram guardados, muitas vezes, para serem exibidos em festas religiosas, geralmente ligadas à colheita do milho. Para esses povos, seus mortos continuavam a fazer parte da comunidade por meio da memória e do espírito, vida e morte eram opostos complementares e não poderia haver um sem o outro, por isso, festejavam com altares repletos de comidas, bebidas, flores e objetos decorativos ligados aos ancestrais, numa conexão entre o conceito de morte e sacrifícios. Somente com a chegada dos dominadores espanhóis, essas comemorações foram transferidas para o dia de todos os santos/dia dos mortos do calendário católico.


Todos somos calaveras



Essa afirmação é atribuída a Jose Guadalupe Posada ( 1852-1913), o gravurista mexicano criador da Calavera Catrina. Estima-se que o artista, comprometido politicamente com a revolução mexicana, produziu mais de 20.000 desenhos, muitos deles satirizando a burguesia e o governo ditatorial de Porfírio Díaz, apoiado pelos latifundiários e favorável à entrada de capital estrangeiro, principalmente o europeu e o estadunidense. Posada também representou, com suas caveiras atuando como gente comum , as atitudes cotidianas do mexicano, com muito humor e crítica ácida. Catrina aparece, portanto, vestida à moda europeia e tem o luxo das damas da alta sociedade, que recusavam a cultura tradicional e abraçavam a cultura estrangeira. Aparece sempre de chapéu, maquiada e vestida elegantemente para nos mostrar que a vaidade é fútil, de nada adianta viver cheia de adornos pois, no final, todos somos caveiras, a morte iguala todos.

Da mescla cultural entre as caveiras pré-hispânicas e as caveiras europeias (comuns no período barroco europeu) , temperadas pelas caveiras satíricas de Posada surge o mais importante símbolo do México: a caveira mexicana, onipresente em todos os aspectos

culturais do país. Frida a ela recorreu, Diego Rivera a apresentou para o mundo, está em roupas, lenços, painéis, anúncios, objetos decorativos, suvenires.



Faça uma visita virtual ao Museu mural Diego Rivera, lá está o mural em que Dieguito ( com 9 anos) tem as mãos dadas com Catrina, que por sua vez está de braços dados com Posada. E ainda vemos Frida protegendo maternalmente Dieguito, uma festa!


Não confunda as festas!

A festa já começou no México. Antes do dia 2 de novembro as cidades se preparam, se enfeitam, promovem desfiles de alejibres _ animais fantásticos que fazem a comunicação entre o mundo dos vivos e o dos mortos , desfile de catrinas, e a Grande Oferenda, feita no Zócalo, centro histórico da cidade do México. A festa está na lista de Patrimônio Cultural Imaterial da Humanidade e é referida como uma explosão de cores, alegrias, afirmação da vida, com a intenção de relembrar os antepassados com amor e respeito. Essencialmente é uma festa indígena, mas hoje todo o país comemora esse dia. Mas atenção, já deu pra perceber que o dia dos Mortos não é Halloween! Não confunda!

Veja no link abaixo um lindo artigo da BBC sobre a festa

E as caveirinhas literárias?


As caveiras são as personagens principais da festa dos mortos. Aparecem em forma de doces de açúcar, feitas em gesso e também na forma literária, você sabia?

São textos rimados e versificados, geralmente escritos com muito humor para falar de uma pessoa que está viva ou morta. Os textos de tradição popular criam uma situação onde uma pessoa encontra a morte e é levada para o outro mundo.

Dizem que a tradição começa com cidadãos descontentes que escrevem pasquines _ textos anônimos e satíricos _ na forma de epitáfio para mostrar seu desacordo com o governo e políticos locais e foram proibidos por muito tempo , mas sobrevivem até hoje, por razões óbvias. Visite esse site, para conhecer as regras de como fazer uma caveirinha literária


Eu fiz uma tentativa de caveirinha literária, claro que usei meu pouco talento e minha personagem conseguiu escapar da Catrina, mas achei uma atividade sensacional para ser feito numa aula de redação ou de língua espanhola, lembra um pouco a literatura de cordel.


Uma história vou contar

Com grande aflição

E nela há de aparecer, infelizmente,

Caveiras de montão

Meu vizinho era saudável , dizia

não tinha medo de doença,

vacina era coisa de fracote

e ele a enfrentava sem covardia

Com sua cara magra, um dia,

A Covid no seu quarto apareceu

Eu te quero e você me quer

A ossuda ria e dizia

Vá, essa é a sua condição,

Aceite a sua sina,

Venho te rondando

Desde aquele dia que rejeitou a vacina.

A partir daquele momento

Fez a promessa devida

Que se conseguisse mudar sua sorte

Nunca mais brincaria com a vida

Mas, na alma, sentia

as carícias gélidas da Dona Morte.

Tantas pessoas morreram...

Tanto as fracas como as fortes

Pensou, sou tão novo,

minha vida é ainda uma menina

Não era uma gripezinha

Vou correndo tomar minha vacina


Que não sou besta

De dar mole pra Catrina!

 

Por fim, se quiserem uma diversão mais do que linda, assistam ao filme a vida é uma festa, da Disney. Viva la vida!!!

 

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2 Comments


arsmoby
arsmoby
Dec 01

Obrigado por este passeio - breve, mas cheio de significado - pela cultura mexicana.

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Mônica Cyríaco
Mônica Cyríaco
Dec 02
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A cultura mexicana é um mar e a gente ama um mergulho , né? E essa atividade da caveirinha é muito interessante pra trabalhar em sala de aula.

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