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Foto do escritorMônica Cyríaco

Não me abandone jamais.

Atualizado: 3 de dez. de 2022

É impossível ficar indiferente após a leitura desse livro. A primeira reação que temos é tentar classificar o que acabamos de ler. É ficção científica? É uma distopia? É uma alegoria da vida de todos nós? Depois de algumas reflexões, vamos percebendo que é um pouco de tudo isso, há claramente uma crítica ao discurso científico que tende a banalizar e racionalizar os valores humanos, é distópico, pois aborda o autoritarismo da ciência e da tecnologia como instrumentos de controle e é uma alegoria sobre nossas vidas, quando nos provoca a pensar no que nos faz humanos: nossos genes? o corpo? a consciência? a alma? os sentimentos? , mas também sobre o grande dilema da humanidade que é experimentar a transitoriedade da vida e seu prazo de validade.

O objetivo desse post é fazer uma espécie de guia de leitura de Não me abandone jamais e posteriormente levantar algumas questões possíveis para serem desenvolvidas na prova de redação da UERJ 2023. Infelizmente precisarei quebrar o jogo literário e entregar algumas surpresas que o leitor descobriria lendo sozinho, ou seja, há inevitavelmente spoiler aqui.

A narradora é Kathy H., tem 31 anos, está se preparando para encerrar uma etapa de sua vida como cuidadora e resolve escrever sobre tudo o que viveu com seus amigos Ruth e Tommy desde a infância até a vida adulta. A narrativa não é linear, já que as recordações surgem, acumulam-se e se superpõem descontinuamente, mas é possível separar o texto em três fases de sua vida : a infância no internato de Hailsham, a juventude no Casario e a vida adulta. Ela está claramente contando sua história para um interlocutor (um clone? um humano? o leitor? ), o que nos coloca dentro da narrativa. Vamos ao enredo.

A infância em Hailsham

O colégio interno é um lugar de rígida disciplina. Ali as crianças "especiais" aprendem a não ultrapassar os limites da propriedade, a respeitar as regras de convivência, têm seus comportamentos padronizados e convivem com guardiões que lhes dão aulas de arte, praticam esportes, são estimuladas a colecionar e a trocar objetos de suas coleções e a expor e doar suas criações para uma galeria de tempos em tempos. O discurso dos dirigentes do internato mascara a realidade , convencendo-os de suas excepcionalidades e de que suas doações são louváveis. É doutrinação para a subserviência, uma pedagogia destrutiva. Mas as crianças não têm muita noção dessa doutrinação e nem tampouco dos objetivos dela. Sabem que suas vidas são importantes para a humanidade, mas não sabem bem por quê. A verdade vai sendo contada aos poucos, tanto para eles quanto para nós, leitores: eles são clones e estão ali para se tornarem futuros doadores de órgãos para os " originais", ou seja, os humanos .

Somos apresentados por Kathy a seus amigos, todos da mesma turma, e a suas rotinas escolares, próprias de qualquer criança do fundamental 1 : brincam, brigam, sentem medo, competem. A infância deles será sempre lembrada como o espaço da felicidade, são unidos pelo afeto e pelo companheirismo.

Tommy é o mais sensível, questionador, inadaptado. Sofre bullying por apresentar um temperamento difícil, tem ataques frequentes de raiva, é excelente jogador, mas não se sai muito bem nas aulas de arte.

Ruth busca encaixar-se nos papéis sociais a fim de ser aceita e evitar a solidão. Quase nunca questiona sua existência, é manipuladora e uma liderança entre as alunas da turma.

Kathy , a narradora, se descreve como uma criança criativa, amiga, que se incomodada com a perseguição a Tommy. Na verdade, se aproxima dele, é sua confidente, é quem consegue acalmá-lo em suas crises de raiva.

Crescem juntos. No final da adolescência já são um triângulo amoroso. Ruth começa a namorar Tommy mesmo sabendo que Kathy gosta dele. Nesse momento da narrativa temos o primeiro contato com o título do romance. Kathy tem uma fita de uma cantora de jazz, Judy Bridgewater, adquirida numa das trocas. Nessa fita há uma canção Never let me go ( Não me abandone jamais) que ela ouve repetidas vezes e lhe transmite sentimentos intensos de solidão e abandono. Num momento em que a menina ouve a música segurando uma almofada é vista por Madame, a curadora da galeria, que surpreendentemente chora ao ver aquela cena. A fita desaparece e Kathy não consegue mais reavê-la. Nessa fase , recebem educação sexual sabendo que casar, ter filhos ou uma profissão jamais lhes será permitido. Os anos em Hailsham serão lembrados por Kathy como os anos de inocência e de felicidade.


A juventude no Casario

Aos dezoito anos saem de Hailsham e pela primeira vez experimentam uma espécie de liberdade com que não conseguem lidar de imediato, porque não foram educados para isso. Nessa fase, o objetivo é que se habituem com a vida aqui fora e se preparem para assumirem suas funções de cuidadores. No Casario há outros alunos especiais de outros colégios e a diferença da educação que receberam fica evidente : os alunos de Hailsham são distintos dos outros. Lembremos que eram educados através da arte, de esportes, ou seja, recebiam uma educação humanista, mais tarde saberemos que essa educação era uma experiência que visava saber se clones tinham alma. Essa será também a causa do fechamento do colégio. Saberemos mais tarde, pelas palavras de Miss Emily, que o fechamento se deu porque à sociedade não interessava mais saber como o programa de doações realmente funcionava, ninguém queria pensar nos clones nem nas condições em que eram criados. É nessa fase que especulam mais a respeito de suas vidas excepcionais, lidam com alunos veteranos que já estão fazendo os cursos para cuidadores, especulam sobre seus possíveis (ou originais) , mas percebemos que nunca entram a fundo no assunto sobre seus destinos.

Nessa fase , também , ouvem pela primeira vez sobre um eventual adiamento concedido aos casais que comprovassem que se amam de verdade. Esse adiamento seria dado a quem era de Hailsham, o que vai levar Tommy a acreditar que os trabalhos entregues à galeria durante todos aqueles anos serviria para demonstrar que eles tinham alma e , portanto, serviriam para que eles tivessem uma chance de adiar seus destinos. Fazem sua primeira viagem de carro com um casal, vão a Norfolk atrás de uma provável original de Ruth e lá descobrem ter se tratado de um engano, mas ali, na "cidade das coisas perdidas", Tommy e Kathy encontram a fita perdida de Judy Bridgewater num sebo. As relações entre os três começam a se deteriorar e essa viagem vai antecipar a decisão de Kathy de sair do Casario e começar o curso de cuidadora. Os amigos se separam.

Cuidadores e doadores : o reencontro

Essa parte se inicia já com Kathy em pleno trabalho de cuidadora, exausta, solitária e muito bem conceituada. Já se passaram 10 anos, ela recebe a notícia do fechamento de Hailsham, de que Ruth já fizera sua primeira doação e que as coisas não tinham saído muito bem. Kathy resolve se apresentar como cuidadora da amiga e retomam aos poucos a velha intimidade. Sabe, então, que Ruth e Tommy se separaram pouco antes de saírem do Casario, que Tommy também já fizera sua segunda doação e estava em recuperação para a próxima. Decidem, então, fazer uma viagem para ver um barco encalhado e nessa viagem falam do passado, do fechamento do colégio, de suas expectativas de vida e dos conhecidos que concluíram _ eufemismo para morte. Comentam sobre as possibilidades minúsculas de chegarem à 4a doação . Ruth parece ser a mais revoltada com seu futuro, tanto que abraça o horror e afirma que deseja concluir logo na segunda doação, além de demonstrar uma certa raiva da situação e da posição privilegiada de Kathy. No caminho de volta, Ruth pede perdão a Kathy por tê-la afastado de Tommy, entrega-lhes o endereço de Madame e os incentiva a procurá-la a fim de que consigam um adiamento. Ruth conclui logo após a sua segunda doação, Kathy se torna cuidadora de Tommy assim que ele realiza a terceira e finalmente retomam sua história de amor. Decidem, enfim, procurar Madame e o encontro é revelador. Encontram Madame e Miss Emily, a diretora de Hailsham, ouvem delas que foram objeto de experiências , que o objetivo era provar que os clones tinham alma e que não havia qualquer possibilidade de adiamento de seus destinos. Descobrem que, após o fechamento do colégio, os alunos estavam sendo criados em condições deploráveis, que a tendência era de piorar e que eles deveriam pensar na sorte que tiveram em terem vivido em Hailsham naquela época, onde suas sensibilidades, seu mundo interior e seus sentimentos eram valorizados, mas, por outro lado, os tornavam extremamente parecidos com os originais e isso causava um verdadeiro pavor nos humanos, que preferiam ver os doadores apenas como peças de reposição. Retirar-lhes qualquer resquício de humanidade facilitava muito as coisas. Além disso, havia um cientista, James Morningdale, que se propôs, naquele momento, a criar super-humanos por manipulação genética, o que acabaria causando um desequilíbrio na sociedade, com a criação de uma geração melhorada dominante e que ameaçaria a configuração da sociedade. Essa pesquisa foi rejeitada e optaram por , a partir dali, tratar os clones como tais e abandonar de vez a história de educação humanizada. Saem dali muito decepcionados, não questionam, não se revoltam, aceitam seus destinos. Tommy , sabendo que sua conclusão está próxima, decide por se separar de Kathy e parte para sua 4a doação. Kathy resolve encerrar seu tempo de cuidadora e marcar sua primeira doação , mas antes disso, escreve sua história, disposta a eternizar aqueles momentos vividos com seus amigos. No fundo, é a sua última rebeldia, escrever sobre tudo o que aconteceu, recusar-se a aceitar a finitude completa, buscar, de algum modo, recuperar pela escrita a curta vida vivida.


QUESTÕES POSSÍVEIS

Exploradores e explorados : a sociedade injusta

O terror que sentimos ao ler esse livro está em testemunharmos o desperdício de vidas , de pessoas que nem sequer percebem o que lhes está sendo roubado, não sabem de seus direitos, não sabem de seu valor, não importam pra ninguém, são coisificados, ignorados por um sistema que os vê como mercadoria. E o pior, parece haver uma aceitação da clonagem tanto por parte dos clones, quanto por parte dos humanos. Há mascaramentos, manipulações até mesmo no vocabulário utilizado, cheio de eufemismos e palavras neutras como concluir/ doador/ possível/ cuidador/ dispensa , que os impedem de refletir e articularem-se até mesmo linguisticamente sobre a condição que experimentam de serem explorados por ações criminosas. A educação e o sistema social que lhes é imposto os convencem de sua inferioridade. Sentem tristeza, raiva, mas aceitam seus destinos, agarrando-se a promessas de salvação irreais. Mas nós sabemos de seus destinos, sabemos o que está acontecendo, vamos tomando consciência das regras de uma sociedade científica e brutal que, ao despi-los de humanidade, abre precedentes para que sofram injustiça. É uma ordem social injusta, porque exploradora de um grupo sobre o outro, é uma uma visão dilacerante de um mundo partido, que nos provoca alguns questionamentos:

* A desumanização, como discurso sobre o outro ou prática que trata o outro como “não humano”, impedindo-o de construir sua própria humanidade, torna-se, nesse contexto, uma tônica que serve para legitimar o status quo do opressor frente ao oprimido, dificultando ou impedindo esse último de libertar-se dessa relação. É possível pensar em outros momentos da história de nossa sociedade em que esse discurso desumanizador tenha sido utilizado?

* Há grupos hegemônicos (ou que se consideram ou se impõem como tais) que veem a si mesmos como pertencedores de um certo modelo de ser e de existir no mundo, em detrimento dos outros, geralmente minorias (mulheres, gays, negros, indígenas, judeus, muçulmanos, estrangeiros etc.) que estariam fora desse modelo. Como construir linhas de fuga, de resistência ou de mudança nesse discurso desumanizador?

* Qual seria o papel da escola numa sociedade justa?

* Os clones, oprimidos, são humanizados pela voz do narrador em 1a pessoa, enquanto os humanos, exploradores, são desumanizados ao tratar outros seres como descartáveis. É possível afirmar que o opressor se desumaniza a si mesmo ao efetivar a desumanização do outro?

" Uma sociedade justa deve desconstruir mecanismos sociais excludentes que, ao restringir o âmbito dos sujeitos de justiça a apenas um grupo social, impedem o tratamento equânime de todas as pessoas" Nancy Fraser - filósofa

Exploradores e explorados : a sociedade científica

Como é que você pode pedir a um mundo que passou a olhar o câncer como moléstia curável, como você pode pedir a um mundo desses que recolha essa cura, que volte aos dias de treva?

O romance é distópico porque aborda a clonagem como assunto central da trama e mostra uma utopia negativa ao revelar falta de perspectiva futura para os clones, mostra também a força do autoritarismo e da tecnologia como instrumento de controle , demostrando um falso otimismo científico da sociedade com efeitos devastadores para as pessoas . Os clones são reduzidos a tecidos e órgãos , em contraste com seus valores humanos. Ao acompanharmos a história dos clones e percebermos que entre eles existe amizade, amor e companheirismo, sentimos a injustiça que eles sofrem e somos provocados a reagir à essa injustiça em relação a todos que não têm escolha.

A concepção do que nos faz humanos passa, hoje, por profundas transformações, principalmente pela interligação entre os organismos e a tecnologia. As correntes cada vez mais fortes do poder tecnológico e econômico tornam fúteis esforços de simples corpos humanos. No entanto, a ciência serve a poucos e nos força a problematizar tendências contemporâneas _ como por exemplo o transumanismo _ que ameaçam a liberdade, produzindo, muitas vezes , efeito de barbárie.

As perguntas que nos fazemos a respeito da ciência:

* A biologia serviria para justificar em algumas sociedades a inferioridade de um grupo em relação a outro?

* A criação de uma vida justifica também o seu fim para salvar uma outra?

* Há vidas que importam menos que outras?

* Até que ponto se pode determinar a vida de alguém? Até que ponto o discurso de autoridade da ciência pode escolher a vida de quem vive e de quem morre?

O absurdo que é viver sabendo que se vai morrer.

Pra finalizar esses questionamentos de um livro tão rico, é impossível não nos colocarmos em lugar dos clones, já que, como leitores da história contada por Kathy, estamos no lugar dos clones como seus interlocutores. Nós não podemos fugir do fato de que só temos uma quantidade limitada de tempo. Tentamos contar a nós mesmos histórias , temos religião buscando uma vida transcendente, amamos, fazemos filhos dando continuidade à espécie ou deixamos heranças materiais, mas não escapamos da morte. Podemos, a partir daí, pensar em questões como :

*Como o amor e a amizade se encaixam nas nossas vidas?

*Nossa existência é limitada, como lidar com essa verdade ? Como cada um de nós lida com a perspectiva da própria morte?

*O quanto aceitamos o que o destino nos deu? Temos liberdade de escolha?

* O percurso de Kathy seria o mesmo que fazemos quando perdemos a inocência ao entrarmos na vida adulta?

*A arte seria uma prova de humanidade? Relembrar e escrever pode ser um modo de lidar com a efemeridade da vida, como faz Kathy?

PROPOSTA DE REDAÇÃO

Pra finalizar, vou deixar aqui um pequeno exercício de adivinhação e tentar formular uma proposta modelo UERJ

Quando a vi dançando aquele dia, enxerguei uma outra coisa. Enxerguei um novo mundo chegando muito rápido. Mais científico, mais eficiente, é verdade. Mais curas para as velhas doenças. Muito bem. Mas um mundo duro, um mundo cruel. E vi uma menina novinha, de olhos bem fechados, segurando no colo o mundo antigo e bom de antes, o mundo que ela sabia , lá no fundo, que não poderia continuar existindo, e ela segurando esse mundo no colo e pedindo para ele não deixá-la partir. Foi isso que eu vi. Não era propriamente você, nem o que estava fazendo, o que eu enxerguei. Mas aquela cena me partiu o coração. Nunca mais esqueci.

O romance se passa nos anos 90, Kathy tem 31 anos no momento em que narra suas memórias. Portanto, segundo essa distopia regressiva, já estaríamos vivendo nesse mundo científico, eficiente, duro e cruel.


A partir da leitura do romance, escreva uma redação dissertativa-argumentativa, com 20 a 30 linhas, em que discuta a seguinte questão:


O século XX assistiu ao impacto do desenvolvimento ilimitado da ciência no ser humano, tais como vacinas, antibióticos, terapias com células-tronco, biotecnologia, além de máquinas e supercomputadores. É possível afirmar que a tecnologia passou a desumanizar o homem, substituindo-o ?


Seu texto deve atender à norma padrão da língua portuguesa, conter um título, além de ser inteiramente escrito com caneta.


Assista ao filme baseado no livro! É lindo! Aqui deixo o trailer legendado:







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1 Comment


profconceicaolisboa
Dec 14, 2022

Excelente a análise da leitura. Mais uma vez brilhante

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