AmarElo, Emicida. 2019
O que dizer desse trabalho? AmarElo são cartas de amor pra um mundo em decomposição. E que cartas lindas!
Foi Emicida quem primeiro me falou de esperança. Me falou também de evasão, me falou de amor, me falou de coletividade, tudo isso no momento de total afastamento social. Sim, apesar de ter sido lançado no final de 2019, meu contato com o álbum foi em maio de 2020 e foi uma senhora porrada, viu? Primeiramente, porque parecia ter sido um álbum premonitório, depois, a partir da escuta ativa, me encontrei com textos belíssimos, pura poesia cantada, como há muito tempo não ouvia e, por fim , porque ali o assunto era o passado /presente/ futuro tudojuntoemisturadoagora. Mais tarde , no fim de 2020, houve o lançamento do belíssimo documentário em parceria com a Netflix que nos pegou pelas mãos e nos guiou pela silenciada história da luta negra pelos direitos civis. O álbum é todo ele a afirmação da vida, do coletivo, da alteridade, da empatia, pois "tudo o que nós tem é nós". Foi um dos maiores presentes que nós poderíamos ter recebido em 2020 e trouxe tanta reflexão, tanta emoção, tanto desejo, que vou me permitir comentar algumas passagens dele que me ajudaram a montar meu manual de recomeço.
A primeira música que me segurou pelo vestido foi Cananéia, Iguape e Ilha Comprida.
Fiquei tão siderada quando a ouvi, que imediatamente quis dividir com meus amigos aquela descoberta e compartilhei o link nos meus grupos de Whatsapp, como se fosse um presente. Sim , um presente, mandei aquele link como se fosse uma carta de amor.
Do fundo do meu coração Do mais profundo canto em meu interior, ô Pro mundo em decomposição Escrevo como quem manda cartas de amor
É assim que a canção começa. Era assim que eu me sentia naquele momento, integrante de um mundo em decomposição. Mas havia tanta beleza nas cartas enviadas a partir do espaço livre, iluminado e com a brisa marinha daquelas cidades litorâneas nomeadas no título ... Lá, tudo era luz , cor, movimento, cheiros, música. Pura sinestesia!
Namoradeiras, tranças, chitas amarelas O vermelho das telhas, o luzir da centelha te faz sentir como dentro de uma tela A esperança pinta em aquarela Chiadeira de rádio, TVs novelas O passeio das abelhas, o concordar das ovelhas nas orelhas E a vida concorda de tabela /.../ Estrela, Lua e vaga-lume Siriris brincando de cardume Fogueira traz histórias a reviver as memórias Noêmia de Souza chamava de lume A noite brinda com negrume A brisa em tuas flores espalha o perfume Sem escapatória da cigarra em oratória Tão íntima da música que dá ciúme
( Nesses dois últimos versos a aliteração faz a gente ouvir o ciciar das cigarras, experimente ler em voz alta!)
Essa fluidez e sensação de liberdade se opõem à metrópole, onde tudo é ruído, dureza, velocidade, choque ( baudelairiano) e violência.
No paralelepípedo, trabalhador intrépido O motor está no ímpeto onde começa tudo O vento acalma o rápido, pra todo som eclético Vitrolas cantam clássicos num belo absurdo Metrópoles sufocam, são necrópoles que não se tocam Então se chocam com o sonho de alguém São assassinas de domingo a pausar tudo que é lindo Todos que sentem isso são meus amigos, também
Essas imagens de choque são reforçadas pelas rimas internas esdrúxulas, com a tônica em fonemas que reproduzem os sons dissonantes da urbe :
paralelepípedo/ intrépido/ímpeto/eclético/rápido/clássicos metrópoles/necrópoles,
Essa música me trouxe um sentimento de fugere urbem, a fuga da cidade, um sentimento pelo qual todos estávamos passando naquele momento. Quem de nós não se imaginou fora da cidade, numa praia deserta, num campo verde, com água limpa, corrente, apenas com as pessoas amadas , numa tentativa de protegê-las do perigo de viver uma pandemia?
Fui, então, ouvir as outras músicas.
O álbum começa com Principia, a afirmação do amor num grande canto ecumênico que junta arruda/buda/salmo.
Com o cheiro doce da arruda Penso em buda, calmo Tenso, busco uma ajuda Às vezes me vem um salmo
As pastoras do Rosário fazem o coro, o pastor Henrique Vieira declama um texto incidental e o poeta revela sua incompreensão do mundo individualista, racista, violento.
Se for pra crer no terreno Só no que nóis tá vendo memo Resumo do plano é baixo, pequeno Mundano, sujo, inferno e veneno Frio, inverno e sereno Repressão e regressão É um luxo ter calma, a vida escalda
Pra logo depois reafirmar sua fé no coletivo
Eu me refaço, farto, descarto De pé no chão, homem comum Se a bênção vem a mim, reparto Invado cela, sala, quarto Rodei o globo, hoje tô certo de que Todo mundo é um
O título da música Principia faz referência ao livro de Isaac Newton, Principia Mathematica , contendo as três leis da física newtoniana. Emicida, numa entrevista, diz que viu essas leis "como uma metáfora a respeito de como a raça humana se encontra na história, já que a lei afirma que quando um corpo entra em contato com outro, ele altera o sentido do corpo menor através do movimento, mas o corpo maior também tem seu destino alterado". É ou não é uma ode ao encontro? Também pensei que, sendo a primeira música do álbum, introduz o tema da origem, que está na base de todas as outras canções, no humano primordial bate o coração-tambor de África mãe negra. Esse coração sonha, acorda, trabalha, se sente alegre pelas pequenas coisas da vida e ganha força na sua ancestralidade.
Tudo que bate é tambor Todo tambor vem de lá Se o coração é o senhor, tudo é África Pus em prática Essa tática Matemática, falou? Enquanto a terra não for livre, eu também não sou Enquanto ancestral de quem tá por vir, eu vou Cantar com as menina enquanto germina o amor É empírico, meio onírico, meio Kiriku, meu espírito Quer que eu tire de tu a dor
O bacana é que essa força ancestral só ganha sentido na partilha, no canto. A única chance de mudança real é na luta coletiva, na denúncia do racismo, na importância de se refazerem os laços comunitários que se perderam no individualismo cotidiano, mas sempre a partir do amor. Por isso o rapper convoca
Cale o cansaço, refaça o laço Ofereça um abraço quente A música é só uma semente Um sorriso ainda é a única língua que todos entende
Embora sabendo que não será fácil,
É mil volts a descarga de tanta luta Adaga que rasga com força bruta /.../ E essa sobrecarga frustra o gueto Embarga e assusta ser suspeito
Ele consegue de certa forma driblar essa dificuldade assim.
Recarga que pus, é que igual Jesus No caminho da luz, todo mundo é preto Ame, pois
Lindo, né?
Na mesma entrevista , cujo link estará disponível no fim desse capítulo, Emicida diz que concebeu o álbum como se fosse um filme, em que Principia é o sonho do protagonista, depois ele acorda para o mundo do trabalho na Ordem Natural das Coisas antes do sol e se emociona com as pessoas saindo cedinho para trabalhar
A merendeira desce, o ônibus sai Dona Maria já se foi, só depois é que o Sol nasce De madruga é que as aranha tece no breu E amantes ofegantes vão pro mundo de Morfeu E o Sol só vem depois O Sol só vem depois É o astro rei, ok, mas vem depois O Sol só vem depois
Nesse amanhecer tão poético, é Dona Maria que anuncia o novo dia, essa é a ordem natural das coisas. Esse amanhecer com latidos de cães, crianças indo pra escola, trabalhadores saindo para o trabalho é também aquele pequeno momento em que fazemos nossos projetos, pois ao amanhecer sempre há esperança " o feijão germina no algodão/ a vida sempre vence"
A canção seguinte é Pequenas Alegrias da Vida Adulta . Com uma deliciosa batida de samba-rock, é uma afirmação da importância da vida em família e começa com um convite à respiração e ao silêncio, há ruídos que nos impedem de aproveitar as pequenas alegrias da vida, como ganhar um beijo antes de sair, ver um boletim todo azul, dormir até mais tarde no sábado, ficar aliviado pelo time não ser rebaixado, emendar um feriado na praia, conseguir uma bela promoção de fraldas ou , até mesmo, encontrar a tampa do pote. São as pequenas ações que acontecem entre quatro paredes da casa, e não nos posts das redes sociais, que podem ser consideradas as alegrias da vida . É isso que nos dá poder, nos faz sentir como guerreiros no front, como o camisa 10, são essas alegrias que nos fazem topar qualquer luta.
E ela disse: Deus te acompanhe, pretin, bom dia Me deu um beijo e virou poesia Deus te acompanhe, Pretin E um lampejo de amor explodiu em alegria Deus te acompanhe, pretin Volta pá nós como camisa 10 após o gol Meu peito rufa, o olho brilha, isso é ter uma família Minha alma disse: Demorô Então eu vou bater de frente com tudo por ela Topar qualquer luta Pelas pequenas alegrias da vida adulta Eu vou Eu vou pro front como um guerreiro Nem que seja pra enfrentar o planeta inteiro Correr a maratona, chegar primeiro E gritar: É por você, amor
A canção seguinte, Quem Tem um Amigo Tem Tudo, é um hino à amizade, e como sentimos falta de amigos nesses quase dois anos! Falando de sua amizade com Wilson das Neves, o músico falou dos nossas, da falta que sentimos daqueles com quem rimos tantas vezes ou de um ombro pra chorar depois do fim do mundo.
Bem , foram essas cartas de amor que recebi do rapper, mas o álbum não acaba aqui. Há canções interessantíssimas, como 9vinha, na qual acompanhamos a relação erótica entre um adolescente e sua arma, há uma releitura do poema simbolista Ismália, em que o racismo é mais uma vez apontado como a grande fratura exposta na sociedade brasileira, numa denúncia que cresce em intensidade na música Eminência Parda, em que claramente o artista assume a intenção de inverter a lógica da dominação branca a partir do poder da palavra.
Minha caneta tá fudendo com a história branca E o mundo grita: Não para, não para, não para /.../ Eu pastoreio a negra ovelha que vagou dispersa Polinização pauta a conversa Até que nos chamem de colonização reversa
E culmina em AmarElo, o grande hino a favor da liberdade plena de todas as minorias, juntas na mesma luta humana. Sendo a grande síntese do álbum, de mesmo nome, a canção reivindica seu lugar de fala. Emicida faz questão de dizer que recusa a manifestação de humanidade que silencia, como as do tipo " somos todos humanos". Não. Ele fala " dos sentimentos que conectam todos nós com essa capacidade de entender que a gente errou pra caramba enquanto sociedade e construiu um monte de degrau e que não é todo mundo que consegue subir. Essa é que é a brisa, a meta é ser humano _ nem sub, nem super."
Permita que eu fale, não as minhas cicatrizes Elas são coadjuvantes, não, melhor, figurantes Que nem devia tá aqui Permita que eu fale, não as minhas cicatrizes Tanta dor rouba nossa voz, sabe o que resta de nós? Alvos passeando por aí Permita que eu fale, não as minhas cicatrizes Se isso é sobre vivência, me resumir à sobrevivência É roubar o pouco de bom que vivi Por fim, permita que eu fale, não as minhas cicatrizes Achar que essas mazelas me definem é o pior dos crimes É dar o troféu pro nosso algoz e fazer nóis sumir
A ideia de AmarElo surge a partir do haikai de Paulo Leminski:
O poema tem tudo a ver com o aspecto solar do álbum, do elo entre duas cores diferentes nasce uma terceira, que é outra, mas que também é um pouco de cada uma. E isso é amor. Só há cor, se houver luz, que venha a luz para novos tempos de diálogo e partilha, que nos sintamos abertos para isso, depois de tanto tempo fechados em nós mesmos, ensimesmados diante de telas luminosas, quero ter coragem, quero ter bem forte dentro de mim, para o meu recomeço, a certeza de que Tudo que nós tem é nós!!
Link da entrevista : https://musicapave.com/artigos/emicida-entrevista-faixa-a-faixa-amarelo/