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Foto do escritorMônica Cyríaco

O conto da Aia

O objetivo desse post é destacar nuances e possibilidades de interpretação do livro e te ajudar a pensar na sua redação, pois pressuponho aqui que todos já devem ter lido o livro e visto pelo menos a 1ª temporada da série. Portanto, não cabe resumir a história.

Margaret Atwood , no documentário O poder da Palavra, afirma ter sido uma leitora de distopias, principalmente as três maiores do século XX, Admirável Mundo Novo ( 1932), de Aldous Huxley, 1984 ( 1949), de George Orwell e Fahrenheit 451 (1953), de Ray Bradbury.

Há alguns empréstimos dessas histórias que podemos perceber no Conto da Aia.

De Admirável mundo Novo, destaco a ideia de uma sociedade definida por castas:  Alfa, Beta, Gama, Delta e Ípsilon, cada uma com uma cor de roupa correspondente, respectivamente cinza, amora, verde, cáqui e preto. No romance de Huxley, não havia mulheres alfa.

De 1984, os empréstimos mais evidentes estão na nomeação de Olhos ao grupo responsável pela vigilância, numa referência imediata ao Grande Irmão, ou Big Brother, de Orwell e no uso de uma espécie de Novilíngua , em que Enforcamento vira Salvamento, Linchamento vira Particicução ( participação + execução), Estupro vira Cerimônia, Rezavagância (cerimônias coletivas de casamentos arranjados), Econoesposa e Libertheos ( Livre de Deus) região da  América Central, perdida por Gilead.

E de Fahrenheit 451, destaco a proibição de leitura e escrita.

Todas as distopias citadas baseiam-se no Totalitarismo, na supressão de ideias dissidentes, na manipulação psicológica, tortura e lavagem cerebral, principalmente por meio da propaganda estatal e a vigilância extrema das massas. A essas características, Atwood acrescenta um Estado Teocrático-Militar, passando por uma séria crise climática com uma drástica diminuição na fertilidade, daí a possibilidade de centrar no corpo feminino toda a forma de opressão. Por sentir falta de haver uma protagonista feminina nos textos distópicos clássicos, decide inverter esses mundos a partir do ponto de vista de uma mulher vivendo neles. Além dessa inversão, elaborou também a regra fundamental para seu livro, a de não entrar nele nada do que já não tivesse acontecido.

Escreve o livro na Berlim ainda dividida pelo muro. Lê jornais e passa a colecionar notícias sobre o que chama de “a década de retrocessos”, os anos 80. Numa entrevista concedida à Roberta Mead para a Revista New Yorker em 2017, a escritora abriu seus arquivos de pesquisa feitos na época da escritura do livro. Leia esse trecho da entrevista:

Clip-clippety-clip, do jornal eu recortei coisas, ela disse, enquanto olhávamos os recortes. Havia histórias de aborto e contracepção sendo proibidos na Romênia, relatos do Canadá lamentando a queda na taxa de natalidade, e artigos dos EUA sobre tentativas republicanas de reter financiamento federal de clínicas que forneciam serviços de aborto. Havia relatos sobre a ameaça à privacidade representada por cartões de débito, que eram uma novidade na época, e relatos de audiências do Congresso dos EUA dedicadas à regulamentação de emissões industriais tóxicas, na esteira do vazamento mortal de gás em Bhopal, Índia. Um item da Associated Press relatou sobre uma congregação católica em Nova Jersey sendo tomada por uma seita fundamentalista na qual as esposas eram chamadas de “handmaidens” — uma palavra que Atwood havia sublinhado. A procriação ritualizada no romance — efetivamente, estupro sancionado pelo Estado — é extrapolada da Bíblia. “'Eis minha serva Bila, entra nela; e ela dará à luz sobre meus joelhos, para que eu também tenha filhos por meio dela'”, Atwood recitou. “Obviamente, eles juntaram os dois e saiu o bebê, e ele foi dado a Raquel. Sério. Está bem ali no texto.” 

Na criação da personagem, elenca os principais problemas de uma mulher numa sociedade distópica : a dominação masculina numa sociedade misógina, o confinamento no espaço doméstico, a mulher serva, a impossibilidade de mandar em seu próprio corpo, a vida em função da família tradicional, a ausência de liberdade democrática, intelectual e financeira.

O traje de aia ela pega de uma embalagem de produtos de limpeza dos anos 40, a Old Ductch cleanser, acrescenta acessórios dos hábitos de freiras e escolhe o vermelho como cor dessa casta, pensando nas cores de prisioneiros de guerra canadenses. Estavam criadas as bases do enredo.


O ASSUNTO


O espaço ficcional da narrativa é Gilead, um país teocrático formado a partir de um golpe militar que mata o presidente dos Estados Unidos e membros do Congresso. O grupo denominado Filhos de Jacob toma o poder com o pretexto de instaurar a lei e a ordem, fecha o espaço correspondente à Nova Inglaterra ( Boston, Connecticut, Maine, Massachusetts, New Hampshire, Road Island e Vermont) , renomeia esse espaço de Gilead e reorganiza a sociedade hierarquicamente, criando castas com base no 1º Testamento.  Os direitos humanos são reduzidos e as liberdades individuais desaparecem, atingindo, principalmente, as mulheres.

A Gilead bíblica, presente no livro do Gênesis, significa Monte do Testemunho e nela acontece a história de Raquel, mulher de Jacob, que oferece sua serva ao marido para que concebam um filho. Inclusive é essa a epígrafe da Bíblia que apresenta o livro.

AS CASTAS DE GÊNERO

Os critérios para a separação em castas das mulheres está diretamente ligado aos papéis de gênero tradicionalmente atribuídos a elas : mães, donas de casa, esposas, filhas, prostitutas, homossexuais e mulheres das classes trabalhadoras. No texto, são aias, Marthas, Esposas, filhas, jezebéis, não-mulheres e as econoesposas, respectivamente. Cada casta é dividida por cores próprias nas suas vestimentas, como veremos a seguir.

AS AIAS

Quem nos conta a história é narradora personagem Offred, que antes chamava-se June, sentada à janela de seu modesto quarto, pensando em como fora parar ali. Sabemos que pertence à classe das aias ( criadas, servas) , mulheres que têm como função gerar filhos para os comandantes, precisam gerar os filhos dos filhos de Jacob. Aias são despidas de individualidade, não têm nome, a gente descobre que Offred quer dizer de Fred, propriedade de Fred, portanto seus corpos não lhes pertencem, mas ao Estado. Se o comandante mudar, o nome muda, o que impossibilita completamente a individualização de qualquer uma delas. Acho muito interessante pensarmos, também , no significado dessa palavra em inglês : offered = oferecida/ sacrificada/ presenteada/ dada/ofertada, o que dá à personagem um caráter de objeto de uso pessoal,  útero a ser fecundado ,ou caráter religioso, de oferenda, oferecida em sacrifício. Objeto sacrificial ou de uso pessoal, a desumanização é completa.

ATENÇÃO!! No livro, objeto de avaliação da UERJ, o nome June aparece muito pouco, diferente da série, por isso não foi objeto de análise aqui.

Ainda para reforçar a desumanização das aias, há a uniformização das vestimentas, elas são obrigadas a usar um traje vermelho, símbolo de sua condição fértil, e um chapéu branco que restringe seu campo de visão, não podem conversar com ninguém, suas falas são protocolares e funcionais. A padronização dos cumprimentos, por exemplo, reforça tanto o texto bíblico quanto suas funções reprodutivas :

_ Bem dito seja o fruto

_ Que possa o Senhor abrir

Sem nome, sem voz, sem corpos, todos os meses as aias são estupradas pelos comandantes com a anuência das Esposas.

ESPOSAS E FILHAS

A vida das Esposas também não parece fácil, pois têm status social, mas pouquíssima autonomia. Elas são inférteis (a infertilidade era sempre atribuída às mulheres), não podem ler, escrever, trabalhar, pintar cabelos nem fumar, bebiam fechadas em quartos, sempre restritas à vida doméstica, também eram obrigadas a vestirem-se de azul-celeste, cor ligada ao aspecto espiritual, reforçando o papel esperado das mulheres casadas em Gilead. Serena Joy, a esposa do comandante havia sido uma cantora Gospel e mais tarde uma ativista evangélica que pregava sobre santidade do lar e a importância do papel das esposas submissas aos maridos, em shows gospel na TV, antes de Gilead. Agora, ao contrário do que seu nome diz _ Joy = alegria, parece não estar muito feliz com o rumo que suas palavras tomaram na nova sociedade. Serena Joy representa coletivamente todas as Esposas de Gilead. As filhas são a mais recente casta criada em Gilead. Estão sempre em casa, sem contato com rapazes , preparadas para o casamente por volta dos 14 anos , vestem-se de branco e usam véus em público e podem ser filhas biológicas das ( poucas) Esposas férteis ou serem filhas delas por meio de aias.

TIAS

As Tias são as responsáveis pela educação das aias, uma educação disciplinante, quase militar, caracterizada por marchas, formas, hinos. São essas mulheres mais velhas e muito poderosas as que comandam o Centro Lea e Raquel, também conhecido por Centro Vermelho.  É a única categoria a quem é permitido ler e escrever, devido à importância que assumem naquela sociedade, pois educam as aias para exercerem seu papel de parideiras, acompanham a distribuição delas pelas famílias importantes, auxiliam os nascimentos, convocam para os rituais, mas são proibidas de se casar.  Vestem-se de uniformes marrons, com touca e cinto de couro, que lembram uniformes militares.

OUTRAS CASTAS

As Marthas ( em aramaico= donas de casa) são as mulheres que cuidam das tarefas domésticas. Vestem-se de verde-desbotado num traje que lembra muito os uniformes cirúrgicos, têm avental, mas não usam toucas nem véus. As econoesposas são as mulheres pertencentes às classes populares e não estão divididas por papéis a desempenhar, devem fazer de tudo, cuidar da casa, parir, criar filhos e filhas, trabalhar para ajudar os maridos. Suas roupas são listradas de vermelho, azul-celeste e verde, um modo de economizar usando sobra  dos tecidos das outras castas.

Entre os homens, temos os Comandantes que, por exercerem papel de destaque no golpe que deu origem a Gilead , têm toda a liberdade possível, inclusive de desrespeitarem as regras. Possuem tudo, carros, Esposas e aias, acesso a produtos proibidos, podendo até frequentar bordéis. A casta imediatamente inferior a essa são os Olhos de Deus, espécie de serviço secreto, ninguém sabe quem são, podem estar em qualquer lugar, muitas vezes disfarçados de Guardiões. Logo abaixo estão os Anjos, soldados treinados para a guerra e que frequentemente estão em frentes de batalhas que ainda acontecem nas fronteiras. Na base das castas estão os Guardiões da fé, que podem ser rapazes muito novos ou idosos, são usados no policiamento diário, como jardineiros ou motoristas, estão em funções mais básicas na escala social e usam roupas da mesma cor das Marthas.  

A NARRATIVA DISTÓPICA

A definição de distopia no dicionário de Oxford é lugar ou estado imaginário em que se vive em condições de extrema opressão, desespero ou privação; antiutopia. Portanto, a construção de mundos distópicos, inevitavelmente, vai apontar para regimes corporativos ou totalitários, que fazem uso de tecnologias sofisticadas como mecanismos de opressão e de controle social, apresentando violência banalizada e o apagamento do indivíduo.  A distopia está sempre ancorada no presente e intimamente conectada com a sociedade da qual é contemporânea.

O conto da aia é uma narrativa distópica. Margaret Atwood explora as possibilidades de um futuro distópico para propor uma especulação ao leitor em relação a esse mundo misógino, que caminha para a intolerância e o autoritarismo, nos convocando a olhar para tudo à nossa volta sem desviar os olhos, como as coisas eram, como são, onde estamos.

Ainda no campo das definições, a escritora afirma ser uma distopia de ficção especulativa,  pois esses mundos futuros são o resultado de extrapolações ou acelerações das atuais tendências do nosso contexto social e político, não cabe ali nada de ficção científica.

A narrativa de O conto da aia é bem complexa , o romance possui duas partes, a primeira, uma ficção, em que encontramos uma narradora-personagem, Offred, que narra em analepse (flashback) sua vida anterior a Gilead e seu presente como aia. Enquanto narra, busca reconstruir seu passado e compreender o presente em que vive. É necessário observar que a temporalidade da narrativa é incerta, oscila entre o passado distante e um passado narrado como presente, visto que ela não poderia narrar ao mesmo tempo que vivia os fatos, pois sabemos que Offred vive numa sociedade de vigilância, sem acesso à meios de se expressar.

ATENÇÃO! A série só faz referência a essa primeira parte.

A segunda parte, denominada de Notas Históricas, apresenta um discurso acadêmico historiográfico proferido no ano de 2195, ou seja, dois séculos depois. Esse discurso busca reconstruir o passado de Gilead, reinterpretando-o, com a pretensão de apresentar a verdade histórica sobre aquela sociedade, assim como legitimar ou deslegitimar a voz da narradora presente no primeiro segmento.

Obs: Para mim, Notas Históricas é a parte mais importante para a prova de redação da UERJ e será analisada ainda nesse post.

Há um aparente paradoxo temporal bem interessante na história, já que a narrativa distópica sempre aponta para um futuro, e a narrativa testemunhal, feita por Offred em primeira pessoa, conta fatos do passado, atestados por uma vivência pessoal e memorialística. Esse jogo temporal ainda será acrescido de uma narrativa no futuro, nas Notas Históricas, em que a narrativa historiográfica, feita naquele ano de 2195, apontará para o passado como objeto de estudo. 

 OFFRED-JUNE, A NARRADORA-TESTEMUNHA

A narradora-personagem é uma mulher, mãe, de aproximadamente 38 anos que ( ainda) não perdeu sua sensibilidade e compartilha suas vivências e experiências com o receptor- leitor. O conto é dela, ela vai dirigir a narrativa. A narrativa é fragmentada, não-linear e desafia o leitor a montar cenas, não necessariamente em ordem cronológica, pois isso seria impossível. O Vai e vem narrativo , permeado de indecisões e de hesitações,  altera a fluidez do texto.

Offred oscila na consistência de seu relato, escolhe o que revelar e o que omitir, recusa ser a voz detentora das certezas, escreve e reescreve os fatos, deixando claro que sua história é reconstrução.  Observe o trecho em que ela dá três diferentes versões para seu primeiro encontro com Nick, cada uma desmentindo ou acrescentando detalhes à anterior, numa verdadeira luta entre a intensidade do vivido e a incapacidade da linguagem de traduzi-lo.

Nada de preliminares; ele sabe por que estou aqui. Nem sequer diz coisa alguma, por que perder tempo com brincadeiras, isto é uma missão. Ele se afasta de mim, apaga a luz. Do lado de fora, como pontuação, há o clarão de um raio; quase nenhuma pausa e então o trovão. Ele está desabotoando meu vestido, um homem feito de escuridão, não consigo ver seu rosto e mal consigo respirar, mal consigo resistir, e não estou resistindo. Sua boca está me beijando, suas mãos em mim, não posso esperar e ele está se movendo, já, amor, faz tanto tempo, estou viva em minha pele, mais uma vez, envolvendo-o em meus braços, caindo e água a cair suave por toda parte, parece que para nunca se acabar. Eu sabia que poderia ser apenas uma vez. Eu inventei isso. Não aconteceu assim. Aqui está o que aconteceu./.../Ele não diz nada, apenas olha para mim, o rosto sério. Seria melhor, mais amistoso, se ele me tocasse. Sinto-me burra e feia, embora saiba que não sou nem uma coisa nem outra. Apesar disso, o que ele pensa, por que não diz alguma coisa? Talvez pense que andei me fazendo de vadia, na Jezebel, com o Comandante dos outros./.../Finalmente ele se aproxima, me toma nos braços, acaricia minhas costas, fica a me abraçar assim, para me consolar. — Vamos — diz ele. — Não temos muito tempo. — Com o braço ao redor de meus ombros ele me conduz até a cama, me deita. Até puxa o cobertor antes. Começa a desabotoar, depois a acariciar, beijos ao lado de minha orelha. — Nada de romance — diz ele. — Está bem? /.../Contudo, não houve nenhum trovão, acrescentei aquilo. Para encobrir os sons; que tenho vergonha de ter feito./.../Também não aconteceu dessa maneira. Não tenho certeza de como aconteceu; não exatamente. Tudo o que posso ter esperança de conseguir é uma reconstrução: a maneira como se sente o amor é sempre apenas uma aproximação. ( Capítulo 40)

É justamente o uso da metalinguagem que possibilita  que Offred crie essa relação com sua própria história, pois deixa em evidência o conflito entre a impossibilidade de escrever suas vivências de forma fidedigna e a necessidade de transmiti-las por um meio viável. Em Gilead mulheres não podem ler nem escrever, não podem conversar, a palavra está completamente interditada. Narrar é uma forma de rebeldia. A linguagem é seu poder secreto, é um esforço de se contrapor à realidade opressora. Na sua história dá sua versão, mantém-se lúcida, resiste ao apagamento. Pela narrativa busca a transcendência e nela tem sua única chance de permanência.

Quando eu sair daqui, se eu puder escrever isso, de qualquer forma, até mesmo na voz de outro, será uma reconstrução também, ainda que em outro grau de distância. É impossível dizer as coisas exatamente como foram, pois o que você diz nunca pode ser exato, você sempre tem que deixar algo de fora, são partes demais, lados, conflitos, nuances

A narração em 1ª pessoa funciona quase como se fosse a narrativa de um diário, em que a narradora é testemunha dos fatos, num espaço em que se expõe quase sem censura. Seu relato tem a potência de uma verdade individual ao mostrar o efetivamente vivido, as coisas que fez, as lutas que deixou de lutar quando ainda havia tempo, e tudo isso vai dando ao texto uma certa veracidade, embora ainda preserve ali um espaço de fantasia, delírio e desejos. O leitor acaba se deixando levar e vai aos poucos conferindo a essa narradora uma certa confiabilidade, já que muito do que ela narra ele já experimenta em seu cotidiano, portanto, empresta sua experiência de vida ao que é contado, é o leitor-cúmplice. Chamado a participar do relato como ouvinte, o interlocutor é quem legitima sua existência: Conto, portanto você existe ( e ela também!).  

Gostaria de acreditar que isso é uma história que estou contando. Preciso acreditar nisso. Tenho que acreditar nisso. Aquelas que conseguem acreditar que essas histórias são apenas histórias têm chances melhores. Se for uma história que estou contando, então tenho controle sobre o final. Então haverá um final, para a história, e a vida real virá depois dele. Poderei recomeçar onde interrompi. Isso não é uma história que estou contando. É também uma história que estou contando, em minha cabeça, à medida que avanço. Conto, em vez de escrever, porque não tenho nada com que escrever e, de todo modo, escrever é proibido. Mas se for uma história, mesmo em minha cabeça, devo estar contando-a a alguém. Você não conta uma história apenas para si mesma. Sempre existe alguma outra pessoa. Mesmo quando não há ninguém. Uma história é como uma carta. Caro Você, direi. Apenas você, sem nome. Acrescentar um nome acrescenta você ao mundo real /.../ Você pode significar milhares. ( Capítulo 7)

Observe que a narradora nesse trecho coloca em dúvida seu próprio relato se isso for uma história, devo estar contando-a para alguém e logo após cria um interlocutor,  um você . Aqui explicita que seu texto se trata de uma ficção que não esconde o que é, mantendo o leitor consciente de estar lendo um relato ficcional criado pela linguagem.  Essa atitude obriga o leitor a se  manter em permanente estado de dúvida e incerteza.  Esse recurso metaficcional nos diz que mais importante que saber a verdade, importa saber de quem é a verdade que se quer contar. É um recurso que humaniza a personagem Offred, mas a descredibiliza como narradora.

E como ficamos nós, os leitores, em relação a essa narradora não-confiável? Não podemos desacreditar dela, o leitor precisa confiar nela para que aconteça o efeito de realidade que experimentamos no texto distópico, somos nós que preenchemos as lacunas do texto, ligamos pontas soltas, damos sentido ao que fica apenas sugerido. Como aceitar o jogo ficcional e nos identificarmos com o relato de Offred, compartilhando seus medos, suas angústias, suas memórias? Aqui entram no jogo ficcional os recursos de verossimilhança e intertextualidade.

A METAFICÇÃO DESPERTA O LEITOR

O leitor que aceita o jogo metaficional já sabe que consome uma história fictícia e que o conteúdo veiculado pela obra não pode ser verificado racionalmente. Mas aceita a regra e permanece cúmplice do relato de Offred, identificado com a narradora-personagem e escolhe acreditar nos fatos narrados, pois  parecem inquestionáveis quanto à sua veracidade. Como leitores sofremos, sentimos medo,  raiva e rimos das ironias de Offred porque a catarse acontece e é esse sentimento de identificação que nos mobilizará para que recusemos aquele tipo de sociedade distópica e todas as formas de opressão ali existentes. O que possibilita essa identificação e esse aceite é a verossimilhança, esse conceito tão importante na Literatura, aquilo que dá ao texto uma aparência de verdade.

A verossimilhança se dá por termos a sensação de que o momento histórico pré-Gilead é exatamente o momento histórico em que nós, os leitores, nos encontramos (guerras, terrorismo, discursos autoritários, misoginia, colapso ambiental ). A localização de Gilead no noroeste estadunidense é outro recurso verossímil, pois acreditamos poder localizar aquela sociedade no mapa . Criando intertextualidades, o romance entra em diálogo tanto com nossa memória literária (as distopias clássicas, já citadas, por exemplo) quanto com textos referidos explicitamente no corpo da narrativa, como a Bíblia e suas citações, os lugares-comuns, os estereótipos (a mãe feminista), letras de música ( Heartbreak Hotel, de Elvis Presley), recursos que entrecruzam o real e o ficcional.

A escolha pelos tempos narrativos também ajudam a criar identificação com Offred, poderíamos destacar o passado distante pré-Gilead, recuperado pela memória da narradora-personagem,  a vida de Offred em Gilead, que muitas vezes é narrada com a utilização do Presente histórico , nos trazendo a sensação de estarmos vivendo aqueles fatos simultaneamente à narradora e o momento da narrativa propriamente dito, uma narrativa oral, que ocorre  posteriormente aos fatos vividos e é gravada em fitas-cassete.

A metaficção também contribui para dar aparência de verdade à narrativa, pois o romance, dividido em duas partes como já foi dito O conto da aia e as Notas históricas adquire características de um texto dentro do outro. O fato de que as personagens das Notas Históricas, texto ficcional, possam falar e se referir ao relato da aia, também ficcional, e ainda construirem um juízo crítico a respeito desse relato significa que estamos diante de uma história dentro de outra história, portanto, de uma metaficção (ou metanarrativa).

Portanto, podemos estabelecer dois pontos fundamentais para uma narrativa distópica : confiabilidade do narrador e verossimilhança, a fim de que possamos acreditar no efeito de realidade que esse tipo de texto nos causa. O narrador precisa da confiabilidade do leitor, de sua cumplicidade, por isso precisa convencê-lo do que narra. O narrador fragmentado em duas categorias no livro, ambos brigando pela confiança do leitor, e as técnicas de verossimilhança utilizadas, exigem um leitor desconfiado, desacomodado, e nos levam (nós, os leitores) a questionar tanto a realidade factual que vivemos no século XXI, como ascensão da extrema-direita, lutas a favor da igualdade de gênero, liberdade religiosa e discursos nacionalistas, presentes na parte ficcional do romance,  como as reconstruções históricas de civilizações antigas feitas por especialistas, na sua maioria homens letrados que julgam deter todo o conhecimento do passado a partir de suas lentes individuais, sem se darem conta de que todo conhecimento é subjetivo, portanto, também uma espécie de ficção.

O final em aberto da primeira parte da história, do conto ficcional de Offred nos deixa com um nada nas mãos, vazios, buscando uma próxima página que não existe. Não estamos acostumados com isso, queremos finais, de preferência felizes. Esse tipo de fechamento narrativo coloca em evidência a maneira como, enquanto autores e leitores, agora nós temos que produzir o final. E então nos deparamos com as Notas Históricas e de repente nos encontramos novamente envolvidos num enredo, que é outro e ainda é o mesmo.


O SILENCIAMENTO DA VOZ FEMININA NAS NOTAS HISTÓRICAS  

Na segunda parte do romance, encontramos um narrador que não participa dos fatos narrados na primeira parte, mas se refere a eles como seu objeto de estudo. Coloca-se como extremamente confiável, já que é um estudioso de Cambrigde , totalmente dedicado aos estudos sobre Gilead , uma sociedade que já não existe em 2195. Essa troca de narrador, que é também uma troca de gênero textual, pois passa da ficção narrativa ao texto expositivo da ata, confere maior credibilidade ao que foi narrado anteriormente ou retira de Offred a verdade de seu testemunho? Apenas o texto de Offred afetaria sua credibilidade, por estar associada ao narrador em primeira pessoa? O texto do pesquisador seria a verdadeira narrativa historiográfica baseada em pesquisas e fatos concretos?  Vamos analisar atentamente essa última parte , na minha opinião, a mais relevante de todo o texto.


Em primeiro lugar, vamos compreender que a segunda parte do romance tem a pretensão de ser um relato objetivo, já que é uma transcrição parcial das atas do Décimo Segundo Simpósio sobre Estudos Gileadianos ocorrida na Universidade de Denay, Nunavit.

Consistindo em uma transcrição parcial das atas do Décimo Segundo Simpósio sobre Estudos de

Gilead, realizado como parte da Convenção da Associação Histórica Internacional, que teve lugar

na Universidade de Denay, Nunavit, em 25 de junho de 2195.

Presidente: Professora Maryann Crescent Moon, Departamento de Antropologia Caucasiana,

Universidade de Denay, Nunavit.

Apresentador do Tema Principal: Professor James Darcy Pieixoto, diretor, Arquivos dos Séculos XX

e XXI, Universidade de Cambridge, Inglaterra.

Essa parte do romance é a mais perturbadora, pois no espaço de poucas páginas experimentamos inúmeras e diferentes sensações. Num primeiro momento nos sentimos aliviados por saber que Offred sobreviveu , que o mundo aparentemente mudou, já que vemos uma mulher professora chefe de departamento de estudos de antropologia caucasiana_ o que sugere que esse grupo está extremamente reduzido_ dirigindo um Simpósio na universidade, 220 anos depois. A voz da autoria feminina de Margaret Atwood já aparece no texto, ao nomear ironicamente a Universidade com um trocadilho: Denay, Nunavit soa como Deny none of it ( = não negue nada disso) . O próprio nome do professor sugere uma certa latinidade, talvez retomando a informação da 1ª parte do relato, em que somos informados de que a América Central havia sido perdida por Gilead para os Libertheos. Haveria, então, uma nova sociedade livre de dogmas religiosos e mais livre, pensamos. Mas nossas esperanças morrem assim que o professor Pieixoto toma a palavra.


Logo após ser apresentado com todos os títulos que conferem ao professor um forte argumento de autoridade, ele, assim que toma a palavra, faz um trocadilho sexista com a professora Maryann Crescent Moon e, pasmem, provoca risos na plateia! 200 anos depois! Nossa esperança de um novo mundo começa a minguar, mas o pior ainda estava por vir. Descobrimos que a história de Offred, narrada oralmente em fitas-cassete, foram filtradas e transcritas pela perspectiva de um homem, que também as organiza sequencialmente e dá título ao livro : The Handmaid’s Tale. E aguentamos outro trocadilho infame , por parte do professor, com a palavra tale /tail (conto/rabo), provocando novamente risos e , agora, aplausos.

Descobrir que o relato ficcional de Offred é, na verdade, uma transcrição de fitas, feita por homens do futuro, com atitudes que revelam misoginia, que nem mesmo a sequência narrativa que experimentamos na primeira parte obedeceu à cronologia dos fatos narrados pela aia (contada em outra ordem a história seria outra?) nos deixa receosos sobre o quanto foi alterado ou até mesmo excluído do seu discurso “verdadeiro” e  nos enche de incertezas.

Pieixoto chega a colocar em dúvida a capacidade intelectual de Offred

Ela parece ter sido uma mulher instruída tanto quanto se poderia dizer que qualquer pessoa diplomada por uma faculdade norte-americana da época fosse instruída. (Risos, alguns gemidos.) Mas as classes trabalhadoras brancas, como se costuma dizer por aqui, eram repletas de mulheres como ela, de modo que isso não ajuda em nada

E critica seu relato , que considera como um objeto que só deixou como legado migalhas da história dos comandantes daquela sociedade. Essa crítica não leva em conta nada do que a mulher viveu, sentiu ou narrou, pois o importante para o pesquisador teria sido que ela detalhasse melhor a posição dos comandantes daquela sociedade para melhor reconstrução da narrativa historiográfica

Este foi o resultado de nossas conjecturas e deduções. Supondo que esteja correto — isto é, supondo que Waterford tenha sido de fato o “Comandante” —, muitas lacunas permanecem. Algumas delas poderiam ter sido preenchidas por nossa autora anônima, tivesse ela tido outra maneira de pensar. Poderia ter nos contado muito sobre o funcionamento do império de Gilead, se tivesse tido os instintos de uma repórter ou de uma espiã. O que não daríamos, agora, por até mesmo vinte páginas impressas tiradas do computador particular de Waterford? Contudo devemos ser gratos por quaisquer migalhas que a Deusa da História tenha se dignado a nos conceder

Margaret Atwood permeia o texto de uma profunda ironia ao outorgar voz ao historiador que assume uma posição distanciada e indiferente diante da profunda experiência da mulher anônima, cujo texto, para ele,  é apenas uma fonte documental. Parece querer alertar os leitores de que o registro histórico pode ser distorcido e remodelado pelo discurso acadêmico, que se pretende isento e objetivo, mas não o é. Vimos que a narrativa de Offred era pouco confiável por estar mergulhada em subjetividade, mas  poderíamos dizer o mesmo da reconstrução histórica de Pieixoto,  uma vez que todas as informações são processadas através de sua lente subjetiva, interpretativa, masculina que fica evidente na condescendência com que observa o passado gileadiano, suavizando as ações despóticas daquela sociedade. Nas suas palavras:

Nosso trabalho não é censurar, mas entender

( Só um homem para construir uma afirmação como essa depois de ouvir aqueles relatos ! )

Poderíamos ler essas notas históricas como denúncia à postura acadêmico-científica que silenciou por séculos ( e ainda silencia) as vozes femininas em todos os campos do conhecimento. O poder da palavra, principalmente da palavra escrita, acadêmica, continua sendo do homem , é como se Offred fosse duplamente silenciada.

A QUESTÃO AUTORIA FEMININA

Vamos abrir aqui uma rápida discussão sobre a questão da autoria. Margaret Atwood é uma escritora feminista e seu texto é um texto de autoria feminina. Por que chamar a atenção para esse fato? Porque é a autora feminina que põe em contraste dois tipos de texto , o narrativo na primeira parte e o técnico , a transcrição da ata, a fim de problematizar  os conceitos de verdade, história e ficção. Em poucas páginas, nos leva a questionar nosso papel de observadores tanto do conto de Offred quanto dos relatos de opressão da História. Como reagimos a eles quando estudamos sobre a escravidão, por exemplo? Distanciados? Nos perguntamos quem constrói a narrativa que nos é contada? Procuramos outras fontes e a colocamos em diálogo ou aceitamos a narrativa que nos convém, que se ancora nas nossas certezas prévias? Estamos prestando atenção ao mundo à nossa volta? Offred , numa das passagens mais interessantes do Conto, afirma :

Era assim que vivíamos então? Mas vivíamos como de costume. Todo mundo vive, a maior parte do tempo. Qualquer coisa que esteja acontecendo é de costume. Mesmo isto é de costume, agora. Vivíamos, como de costume, por ignorar. Ignorar não é a mesma coisa que ignorância, você tem de se esforçar para fazê-lo. Nada muda instantaneamente: numa banheira que se aquece gradualmente você seria fervida até a morte antes de se dar conta. Havia matérias nos jornais, é claro. Corpos encontrados em valas ou na floresta, mortos a cacetadas ou mutilados, que haviam sido submetidos a degradações, como costumavam dizer, mas essas matérias eram a respeito de outras mulheres, e os homens que faziam aquele tipo de coisas eram outros homens. Nenhum deles eram os homens que conhecíamos. As matérias de jornais eram como sonhos para nós, sonhos ruins sonhados por outros. Que horror, dizíamos, e eram, mas eram horrores sem ser críveis. Eram demasiado melodramáticas, tinham uma dimensão que não era a dimensão de nossas vidas. Éramos as pessoas que não estavam nos jornais. Vivíamos nos espaços brancos não preenchidos nas margens da matéria impressa. Isso nos dava mais liberdade. Vivíamos nas lacunas entre as matérias.

O conto da aia, portanto, não é apenas um texto de ficção, é muito mais que isso. É um texto de autoria feminina que cria um futuro distópico com elementos de opressão da mulher que já ocorrem no nosso cotidiano, deixando claro que direitos conquistados duramente podem ser apenas provisórios. Mas é também uma autoria que contesta o discurso  acadêmico supervalorizado a respeito do silenciamento  das vozes femininas por homens ao longo dos séculos. Essa contestação é feita por Atwood ao escolher encerrar seu romance criando uma espécie de caricatura de um professor universitário machista e misógino, aclamado por uma plateia majoritariamente masculina _ percebemos isso na quantidade de aplausos, risos  e poucos murmúrios (postos entre parênteses)  que evidenciam uma perspectiva pouco otimista em relação ao avanço na garantia de direitos das mulheres. A condição feminina posta em perspectiva de 1985 a 2195 nos deixa um gosto amargo de derrota e nos força a refletir, sem jamais desviar os olhos, das condições de apagamento contra as quais devemos lutar. E sempre aceitar o convite que Pieixoto nos faz ao final da narrativa :

Alguma pergunta?


Questões possíveis, da mais para a menos provável:

1- O apagamento das mulheres na História e o direito à memória.

2- O romance da Margaret Atwood, em virtude da estrutura dual proposta, faz-nos pensar sobre as relações entre História e ficção em distintos níveis. Seria toda história uma forma de ficção?

3- Toda história é uma reconstrução subjetiva? Existe verdade histórica?

4- Segundo Margaret Atwood, a popularidade do Conto da aia depende do que está acontecendo no mundo em geral. Por que a popularidade do livro aumentou ?

5- A liberdade não é um presente dado e sim um trabalho duro, cotidiano, não podemos ser complacentes. Direitos duramente conquistados hoje podem se tornar provisórios amanhã.

6- O perigo de se permitir que uma religião exerça o controle absoluto sobre o Estado. A questão do fundamentalismo religioso

7- A luta das mulheres por igualdade de direitos passa, também, pela possibilidade de decidirem sobre os próprios corpos. O autoritarismo começa pelo controle dos corpos femininos. O que define a cultura do estupro.




 

 

 


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2 Comments


arsmoby
arsmoby
Dec 01

Oi, minha amiga! Olha eu aqui outra vez.

Ainda não li o livro e tampouco vi a série e, portanto, fiz a leitura do seu texto sem conseguir preencher algumas lacunas. Mas ele me oferece várias pontas pra puxar, entre as quais estão a minha criação e, parte em função dela, minha maior proximidade com o universo entendido como feminino, e a minha experiência acadêmica, de historiador na condição paradoxal de homem que escreve sobre as mulheres - pra minha sorte, com a aprovação de muitas delas, várias com relevância acadêmica. Como disse o Paulinho da Viola, "as coisas estão no mundo, só que eu preciso aprender". Obrigado por esse belo roteiro.

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Mônica Cyríaco
Mônica Cyríaco
Dec 02
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Meu querido , é muito importante termos homens leitores de mulheres e Margaret Atwood é uma daquelas que nos ensinam demais! Obrigada pelos seus comentários, são importantes pra que eu possa ter uma resposta para aquilo que escrevo.

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