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Foto do escritorMônica Cyríaco

Para Caetanear o que há de bom! ( 2 )

O segundo post sobre Caetano Veloso começa com a segunda homenagem internacional recebida por nosso artista em uma semana. No dia 12 de setembro de 2023, Caetano recebeu do governo português a Medalha do Mérito Cultural numa cerimônia muito emocionante conduzida pelo Primeiro Ministro António Costa.

No link abaixo, a cobertura completa do evento que teve grande repercussão em Portugal.

Deixo em destaque alguns trechos da fala do Ministro António Costa sobre nosso artista :

Na língua como na música, Caetano esteve sempre ciente do património e da tradição em que se insere, mostrando que isso não era incompatível com, ou oposto a uma incessante renovação e reinvenção. Pela sua boca, o português nunca foi menos que uma grande língua do mundo. ( grifo meu) /.../
Caetano escreveu uma célebre canção chamada “Língua”, que é todo um tratado sobre a sua visão da língua portuguesa como um mosaico de falas dos mais diversos lugares, onde cabem Luís de Camões, Fernando Pessoa, Carmen Miranda, o Sambódromo, a Mangueira ou Luanda. /.../
As canções e a poesia de Caetano fazem parte do nosso património comum. A sua obra, das mais extraordinárias e inventivas do nosso tempo, é um motivo de orgulho para todos os que falam português.

Veja aqui a transcrição do discurso do Primeiro Ministro:


Infelizmente nosso país anda tão problemático , que uma notícia como essa foi dada lá fora e quase silenciada aqui. Caetano postou em suas redes sociais a honraria, mas só encontrei duas referências à homenagem nos portais de notícias brasileiros : O Globo e Tribuna do Norte. Por isso inicio o post mencionando o acontecimento, deixando claro que é cada vez mais urgente que se leve Caetano Veloso para as salas de aula.


No post anterior, vimos um artista que se define como barroco e que realiza toda sorte de experimentalismos, sem perder a consciência profunda da linguagem e de seu projeto de se dedicar a criar confusões de prosódias/E uma profusão de paródias que curem dores e furtem cores como camaleão. Para isso, trabalha a linguagem com hipérbatos, elipses, os paradoxos, o espelhamento, a fusão, a exuberância verbal. Esse é Caetano!

A letra que vou trabalhar hoje é Outras Palavras, que deu nome a seu álbum lançado em 1984. Vejamos o que ele diz sobre essa canção:

Gosto muito do disco "Outras Palavras", que tem tantas músicas bacanas, a canção "Outras Palavras" entre elas. Perguntam-me, às vezes, o que significa a expressão outras palavras, e talvez eu nunca tenha ainda explicado. Era uma gíria que a Mônica Millet, do Gantois, amiga nossa, dizia muito. É como se dissesse: "Agora são outros quinhentos", mas de outra maneira. Como se você dissesse: "Agora são outras palavras, o negócio é outro". Tive idéia de fazer uma canção em que as palavras parecessem outras. Também, inventando palavras, coisa que eu sempre gostei. Adoro esses assuntos. Por isso gosto tanto de Joyce, de Guimarães Rosa, desses autores que trabalham na linguagem, montando palavras, criando novas, cruzando palavras em situações surpreendentes. As canções desse disco foram feitas durante a excursão do disco anterior, do "Cinema Transcendental".

(Depoimento a Charles Gavin e Luís Pimentel - Livro "Tantas canções", 2002)


Desse depoimento, já percebemos que a letra parte de um projeto, o de criar neologismos. Vamos tentar aqui descobrir a arquitetura da letra e qual o negócio ao qual ele se refere.

Trabalhei essa canção em sala de aula , vou tentar descrever a abordagem que dei à canção e trazer algumas considerações sobre os significados que ela despertou em mim. Vamos à letra:

OUTRAS PALAVRAS


Nada dessa cica de palavra triste em mim na boca Travo trava mãe e papai, alma buena dicha loca Neca desse sono de nunca jamais nem never more Sim, dizer que sim pra Cilu, pra Dedé pra Dadi e Dó Crista do desejo o destino deslinda-se em beleza: Outras palavras Tudo seu azul tudo céu tudo azul e furtacor Tudo meu amor tudo mel tudo amor e ouro e sol Na televisão na palavra no átimo no chão Quero essa mulher solamente pra mim mas muito mais Rima pra que faz tanto mas tudo dor amor e gozo: Outras palavras Nem vem que não tem vem que tem coração tamanho trem Como na palavra palavra a palavra estou em mim E fora de mim quando você parece que não dá Você diz que diz em silêncio o que eu não desejo ouvir Tem me feito muito infeliz mas agora minha filha: Outras palavras Quase João Gil Ben muito bem mas barroco como eu Cérebro máquina palavras sentidos corações Hiperestesia Buarque voilá tu sais de cor Tinjo-me romântico mas sou vadio computador Só que sofri tanto que grita porém daqui pra a frente: Outras palavras

Parafins gatins alphaluz sexonhei la guerrapaz Ouraxé palávoras driz okê cris espacial Projeitinho imanso ciumortevida vivavid Lambetelho frúturo orgasmaravalha-me Logun Homenina nel paraís de felicidadania: Outras palavras

( VELOSO, Caetano. Outras Palavras, 1984)

Inicialmente, vou tentar passar aqui a sequência didática que montei na apresentação da canção aos alunos:

1- Ouvir a canção

2- Procurar saber o que o ouvinte achou/entendeu do texto

3- Pedir que destaque os trechos que conseguiu compreender

4- É possível dizer em que estado de espírito o eu lírico se encontra?

5- É possível saber o que ele não quer?

6- É possível saber o que ele quer?

7- O que o impede de conseguir seus objetivos? Qual seria o conflito?

8- O que ele sugere para acabar com o impasse?

9- Quais palavras/ ideias podem ser identificadas nas novas palavras?

10- Explique com suas palavras o que você imagina ser o mundo novo sugerido pelo poeta

Obs: É importante que o professor vá anotando as respostas no quadro, para que depois os alunos percebam que a incompreensão da letra faz parte do projeto da canção. Vamos conversar sobre a canção?


OUTRAS PALAVRAS , ou a incomunicabilidade entre o eu e o outro.


Quem de nós nunca percebeu que as palavras não eram capazes de dar conta do que precisávamos dizer? Que as palavras eram muitas e insuficientes para dar conta da nossa realidade interior? Quantos de nós experimentamos usar outro tipo de linguagem ou criar outras palavras?


Partindo de uma situação limite em que a comunicação parece impossível, o sujeito poético faz um discurso absolutamente trincado e quase ininteligível. Digo quase, porque é possível obter algumas pistas a respeito do conflito existente, do receptor da mensagem, do que o sujeito poético renega e o que propõe. Vamos à 1ª estrofe:

Nada dessa cica de palavra triste em mim na boca Travo trava mãe e papai, alma buena dicha loca Neca desse sono de nunca jamais nem never more Sim, dizer que sim pra Cilu, pra Dedé pra Dadi e Dó Crista do desejo o destino deslinda-se em beleza: Outras palavras

Inicialmente tenta misturar línguas diferentes o que denota a dificuldade de dizer o que quer, e nega a cica da palavra triste em sua boca, nega o sono, mas quer dizer sim ( 2 vezes! ) pra Cilu, Dedé, Dadi e Dó. A aliteração torna os nomes quase uma reprodução tatibitati da linguagem infantil e aponta para um destino que, a partir do desejo, deslinda-se (revela-se) em beleza.


A segunda estrofe retoma as imagens de beleza deslindada : céu azul, furtacor, amor, mel, ouro, sol, dor, amor e gozo e, pela primeira vez, aparece essa mulher de quem ele deseja tudo, em todo lugar e momento e muito mais

Tudo seu azul tudo céu tudo azul e furtacor Tudo meu amor tudo mel tudo amor e ouro e sol Na televisão na palavra no átimo no chão Quero essa mulher solamente pra mim mas muito mais Rima pra que faz tanto mas tudo dor amor e gozo: Outras palavras

A 3a estrofe retoma a negação presente lá no início do texto, mas agora fica evidente a ausência de diálogo , embora o coração seja tamanho trem, as coisas não acontecem como o desejado: tens me feito muito infeliz, você parece que não dá, nem vem que não tem, mas agora, minha filha... Observa-se aqui que a fala discursiva, direta é substituída pelo discurso reflexo, aquele que não diz para dizer, que usa o silêncio como alternativa de comunicação você diz que diz em silêncio o que eu não desejo ouvir.


O diálogo está comprometido, a linguagem que media a interação entre os dois não funciona. A palavra, qualquer palavra ( linguagem, logos, verbo, lema, expressão, voz) é pessoal e intransferível, no caso, incomunicável. O seu eu de fato não é conhecido, falado, expressado, a não ser dentro dele mesmo e isso causa angústia.

Nem vem que não tem vem que tem coração tamanho trem Como na palavra palavra a palavra estou em mim E fora de mim quando você parece que não dá Você diz que diz em silêncio o que eu não desejo ouvir Tem me feito muito infeliz mas agora minha filha: Outras palavras

A 4ª estrofe abandona a linguagem referencial em favor da poética, utilizando uma escrita criptográfica tal , que ela própria se afirma barroca. Citando suas referências musicais, como João, Gil, Ben e Buarque, o sujeito poético retoma a oposição razão X emoção, opondo máquina, cérebro, palavra, vadio computador a sentidos, corações, hiperestesia, romântico. Esse conflito é o reflexo da incomunicabilidade da relação amorosa.

Quase João Gil Ben muito bem mas barroco como eu Cérebro máquina palavras sentidos corações Hiperestesia Buarque voilá tu sais de cor Tinjo-me romântico mas sou vadio computador Só que sofri tanto que grita porém daqui pra a frente: Outras palavras

No entanto, ele recusa esse sofrer tanto, que grita. E desse grito, surgem outras palavras, aquelas que apontam para a criação de um novo mundo e, para um outro mundo, outras palavras:

Parafins gatins alphaluz sexonhei la guerrapaz Ouraxé palávoras driz okê cris espacial Projeitinho imanso ciumortevida vivavid Lambetelho frúturo orgasmaravalha-me Logun Homenina nel paraís de felicidadania: Outras palavras

( Vou abrir um parêntesis para uma análise breve da palavra grega lógos , que significa razão, palavra, linguagem e os sentidos filosóficos e teológicos que esta adquire em nossa cultura:

1. [Filosofia] Razão ou princípio da inteligibilidade.

2. [Filosofia] Princípio platônico mediador entre o mundo sensível e o inteligível.

3. [Filosofia] Força divina ou criadora que é organizadora do mundo.

4. [Teologia] Cristo ou o Verbo de Deus, segunda pessoa da Trindade.

(logos, in Dicionário Priberam da Língua Portuguesa, 2008-2023) )


Caetano cria (neo)logos, ou seja, neologismos fundados numa nova razão, nova lógica, novas possibilidades de organizar o mundo. O exercício aqui seria o de deslindar os neologismos e perceber de que elementos esse novo mundo de palavras seria formado. Agora o negócio é outro! A canção realiza nessa estrofe o que o sujeito poético propõe desde o início. A exploração da carga expressiva dos neologismos subverte e transforma a estrutura frasal, morfológica, lexical, linguística. Somente na linguagem poética os opostos podem ser unificados. Alpha e luz, Sonho e sexo, guerra e paz, ouro e axé, morte e vida, orgasmo e maravilha_ valha-me, Logun!


Criando um jogo lúdico com as palavras , material do próprio poema, cria uma metacanção, a canção que reflete sobre o processo criador mais geral. Desse jogo criativo nós participamos como receptores e também como criadores , porque estamos diante de uma obra inacabada, uma obra em processo ( seria vida?). Ao nos tirar da indiferença da linguagem funcional, nos obriga a refletir sobre a reconstrução da relação amorosa, pois o desejo do encontro abre a possibilidade para a existência de outras linguagens , só somos humanos na relação com o Outro. Estamos diante do desejo do encontro, da transcendência, da fusão, no plano concreto da linguagem , pois apenas nesse plano homenina podem criar um nel paraís de felicidadania.


Caetanem-se! Espalhem a palavra, Outras Palavras! Deixo a todos o meu Abraçaço!






























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