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Foto do escritorMônica Cyríaco

Sobre o prazer de se olhar no espelho da africanidade.

Atualizado: 22 de dez. de 2022

Na semana passada o Brasil se viu diante de uma imagem bastante ilustrativa da racialização de sua sociedade: enquanto homens e mulheres brancos assistiam a um deputado federal, descendente do Império, discursar parabenizando a Princesa Isabel, um grupo de representantes de diversas associações do Movimento Negro entrou no plenário com faixas e cartazes que diziam , entre outras mensagens, "#Falsa Abolição!", "Isabel não nos deu nada", "Parem de nos matar", além da imagem da vereadora assassinada Marielle Franco. A reação foi imediata, um lado gritava "Isabel!" e o outro , "Marielle!" e a sessão teve que ser suspensa.

Pensando nesse terrível, mas significativo episódio, resolvi postar a sequência didática de um projeto sobre cultura e literatura africanas que realizei, a partir da Sala de Leitura de uma escola municipal do Rio, e que foi um sucesso, tanto pelo envolvimento dos alunos, quanto pelo nível de aprendizagem que pudemos vivenciar juntos. Vamos lá?


ÁFRICA, SAINDO DO LUGAR COMUM

O objetivo da escolha do tema foi construir com o aluno um novo olhar para a África, reconhecendo-a como berço da civilização, como parte integrante da cultura brasileira e como um continente em que a diversidade étnica e cultural riquíssima contrasta com décadas de exploração e abandono. Além disso, ao valorizar a cultura africana havia o objetivo de incentivar no aluno o orgulho de se descobrir afrodescendente.


SEQUÊNCIA DIDÁTICA

Duração: 2 meses , 1 aula por semana, de 20 de setembro a 20 de novembro

Exposição: Semana da Consciência Negra

Público alvo : Todas as séries do Fundamental I e II, incluindo os alunos do EI e das turmas do Projeto Acelera.

Preparação: 1º mês, 4 aulas: A cada semana na sala de leitura, lemos um livro diferente. Para as turmas de EI e séries iniciais, foram escolhidos o vídeo-livro Menina bonita do laço de fita, de Ana Maria Machado e o livro Bruna e a galinha d'Angola, de Gercilga Almeida. Para as turmas mais avançadas, Meus contos africanos, org. de Nelson Mandela, Histórias de princesas, de Kiusam de Oliveira, Os da minha rua, Ondjaki, Obax, de André Neves, Berimbau mandou te chamar, de Mariana Massarani, Uma ideia luminosa, reconto da Eritreia, de Rogério Andrade Barbosa, Ganga Zumba, de Rogério Borges, Cartas entre Marias: uma viagem à Guiné Bissau, de Virgínia Maria Yunes e Maria Isabel Leite e Meu nome é Pomme, de Kristien Dieltiens. Todos esses livros estão disponíveis nas salas de leitura do Município do Rio.



2º mês : 4 aulas

Assistimos ao longa animado Kiriku e a feiticeira, do franco-belga Miguel Ocelot ( 1998) e Visitamos o site http://www.africa-turismo.com/ em que pudemos conhecer geograficamente, historicamente e turisticamente o continente em evidência.


Atividades:

Essas leituras suscitaram as seguintes indagações :

1- Qual a localização da África?

2- Por que tanta diversidade em África?

3- Que línguas são faladas no continente?

4- Como os africanos pararam por aqui?

5- O que nos deixaram?

6- Que músicas e quais artistas tocam nas rádios ? Apresentei-lhes algumas rádios angolanas online em http://radios.sapo.ao/canal-a


Após a leitura de Berimbau, que utiliza como texto as letras cantadas nas rodas de capoeira, os alunos ( um deles já fazia capoeira e convidou seu mestre) propuseram que convidássemos um Mestre capoeirista para vir à escola; o livro Bruna e a rainha da Angola despertou o interesse pela argila e o primeiro segmento construiu brinquedos de argila durante as aulas




O livro Cartas entre Marias despertou no Acelera o interesse pela pesquisa dos turbantes e das tranças afro, usadas pelas mulheres, além da curiosidade a respeito da influência africana na nossa alimentação; o filme Kiriku despertou os meninos do Fundamental I para as músicas e as danças africanas. Esse filme é sensacional e está disponível dublado no Youtube. Kiriku é um menino inteligente, destemido, engraçado, de bom coração , enfim, tem todas as características do herói clássico e nem preciso dizer que a identificação foi imediata!



Foram tantos os interesses e ideias , que o projeto ficou maior do que o esperado.

Naquela semana , os professores de todas as turmas da escola foram convidados a ler um conto africano para suas turmas no início das aulas nos dois turnos.

No início da semana, os alunos decoraram a escola e os murais dos corredores com panôs que eles criaram, além de exporem suas pesquisas nos murais.



No dia da exposição, no recreio, o turno da manhã:

1- Apresentou seus trabalhos de argila e máscaras africanas

2- Os alunos do 5ºano, a partir da orientação de pesquisa, ensinaram brincadeiras infantis de origem afro para os alunos menores: escravos de Jó, Pegue o rabo ( uma variação da brincadeira do lenço) e Terra-Mar, uma variante do morto-vivo, em que é traçada uma linha que divide terra e mar, no princípio todos devem ficar na terra e quando for ordenado devem trocar para mar cada vez mais rápido, e vão sendo eliminados à medida em que forem errando.

3- Apresentou um dicionário de palavras de origem africana presentes na nossa língua.



O recreio do turno da tarde ficou assim:

1- Os alunos do Acelera, a partir de pesquisas sobre alimento e culinária africanos, criaram um livro de receitas, que está na biblioteca da escola até hoje.






2- Um outro grupo de alunos do Acelera trançaram cabelos dos visitantes enquanto lhes contavam as histórias sobre os significados das tranças ( baseados na leitura do livro Cartas entre Marias)



3- Os meninos do 4º ano fizeram uma apresentação dançando Kuduro e arrasaram!

4- Houve a apresentação de uma roda de capoeira, com uma conversa sobre a importância da cultura africana para a formação da cultura brasileira.


5- Fizemos uma feijoada que foi servida para os alunos e professores nesse dia.



Foi um sucesso! Foram dois meses de intenso trabalho, mas também de dias inesquecíveis! Nas escolas públicas, nossos alunos são majoritariamente negros, muitas vezes se olham no espelho da sociedade e não se veem. O ensino centrado no cânone eurocêntrico nega a África como um continente de cultura milenar, berço da humanidade, e fala de africanos escravos e não de escravizados ( e isso muda tudo!), comemora uma lei assinada por uma princesa , mas nega o protagonismo de Zumbi dos Palmares. Temos obrigação de desnaturalizar o racismo e o desafio de resgatar a importância do patrimônio cultural africano a partir do sentido de comunidade que lhe é peculiar, mediado pela ludicidade e pela alegria dessa cultura, sem medo, preparados para a empreitada, planejados, para não cairmos na armadilha dos velhos clichês. Se acreditamos numa escola plural, diversa, cooperativa, temos que assumir essa responsabilidade. A arte em todas as suas manifestações nos ajudará sempre. E que respeitemos o lugar de fala dos maiores interessados no assunto: comemorações, só em novembro, no dia da Consciência Negra!


Links importantes:

Projeto de valorização da cultura afro-brasileira: http://www.acordacultura.org.br

Revista digital de atualização permanente para todos que trabalham com livro e literatura https://revistaemilia.com.br

Africanidades brasileiras e Educação ( 2008). Documentário.







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